Danrley é um recém-nascido (RN) de 15 dias de vida que já saiu ictérico da maternidade e vem piorando, segundo a mãe. Diurese e evacuação presentes e de coloração normal. Há uma semana, a mãe introduziu leite artificial durante a noite. Segundo a enfermeira Rita, Danrley perdeu um pouco de peso e a icterícia dava para só observar.
A icterícia constitui-se em um dos problemas mais frequentes no período neonatal e corresponde à expressão clínica da hiperbilirrubinemia, que é definida como a concentração sérica de bilirrubina indireta (BI) maior que 1,3 a 1,5 mg/dL ou de bilirrubina direta (BD) superior a 1,5 mg/dL, desde que esta represente mais do que 10% do valor de bilirrubina total (BT).
Em casos de BD acima de 1,5 mg/dl, trata-se de colestase neonatal.
No período neonatal, na maioria das vezes, a icterícia decorre de um aumento da fração indireta da bilirrubina e apresenta uma evolução benigna, com início após 24 horas de vida, pico entre terceiro e quarto dias de vida e fim no final da primeira semana. No entanto, um pequeno número de pacientes com níveis “críticos” elevados de BI pode desenvolver a encefalopatia bilirrubínica, que ao exame anátomo-patológico caracteriza-se pela coloração amarelada dos núcleos da base, sendo denominado “kernicterus”.
No caso em questão, Danrley já está com 15 dias e ainda continua ictérico, exigindo assim uma investigação etiológica. Primeiro é importante sabermos se a icterícia é decorrente de um aumento de bilirrubina indireta ou direta. O fato de diurese e evacuações estarem de cor normal fala a favor de ser um aumento de bilirrubina indireta, porém vale a pena dosar bilirrubina total (BT) e frações para confirmar antes de investigar a causa dessa icterícia mais prolongada.
Pensando no caso de Danrley, por se tratar de uma icterícia prolongada com perda de peso e dificuldade no aleitamento materno, deveríamos afastar as seguintes causas:
1. Icterícias hemolíticas, sendo mais comuns a doença por incompatibilidade de Rh e ABO e a deficiência de G-6-PD.
- Doença hemolítica por incompatibilidade de Rh (antígeno D) – ocorre quando a mãe é Rh negativa e o RN é Rh positivo. A hemólise perinatal é devida à destruição das hemácias fetais e/ou neonatais, portadoras do antígeno D ou Du, pelos anticorpos maternos IgG anti-D. Em 25% dos RN afetados ocorre hemólise leve, com hiperbilirrubinemia mínima e anemia acentuada aos 2 a 3 meses de idade. Em 50% dos casos desenvolvem-se anemia, hepatoesplenomegalia e hiperbilirrubinemia precoce, com grande possibilidade do desenvolvimento de encefalopatia bilirrubínica entre o 2o e o 3o dias de vida. A forma grave é caracterizada pela presença de hidropsia fetal. O diagnóstico laboratorial materno compreende a ausência do antígeno D eritrocitário e a presença de anticorpos séricos anti-D detectados no teste de Coombs indireto. Recomenda-se a coleta de sangue de cordão de todos os RN de mãe Rh negativo para a realização da tipagem sanguínea (ABO, D e Du) e do Coombs direto. Este, quando positivo, permite afirmar que as hemácias estão recobertas com anticorpos maternos.
- Doença hemolítica por incompatibilidade ABO é limitada a RN tipo A ou B de mães tipo O e pode ocorrer na primeira gestação. O quadro clínico é variável. A principal manifestação é a icterícia precoce, que aparece nas primeiras 24 horas de vida. A icterícia apresenta uma evolução errática e pode persistir por duas semanas. Eventualmente, o valor sérico de BT pode ser superior a 20 mg/dL. A anemia grave é rara. A comprovação da doença é difícil. A suspeita é realizada com base na evolução do quadro clínico. Os níveis de hemoglobina e hematócrito podem ser discretamente diminuídos com a presença de esferócitos e reticulócitos entre 10% e 30% no sangue periférico, acompanhada de policromasia. O Coombs direto pode ser positivo em 20% a 40% dos casos, porém a sua positividade não tem associação com quadros graves de hemólise. A pesquisa de anticorpos anti-A ou anti-B no soro materno é desnecessária, pois estes são naturalmente adquiridos. A detecção de anticorpos anti-A ou anti-B no sangue de cordão ou do RN (teste do eluato) apenas denota que existem anticorpos acoplados às hemácias, não tendo associação com a gravidade da doença. Porém a negatividade do teste do eluato significa que não existem anticorpos anti-A ou anti-B ligados ao eritrócito do recém-nascido.
- Deficiência de G-6-PD (glicose-6-fosfatodesidrogenase): esta enzima eritrocitária atua na defesa antioxidante intracelular. Os RN com deficiência, quando expostos a estresse oxidante, acidose, hipoglicemia, infecção ou algumas drogas, podem desenvolver hemólise e hiperbilirrubinemia. As principais substâncias presentes durante a gestação no leite materno ou se administradas ao RN, que podem desencadear hemólise, incluem: quemicetina, sulfas, anti-inflamatórios, antimaláricos, sulfonamidas, sulfonas, analgésicos, anti-helmínticos, vitamina K sintética, pós-mentolados, além de fava e naftalina. A icterícia ocorre após as 24 horas de vida e pode intensificar-se no decorrer da primeira e segunda semanas de vida, desencadeando o quadro clínico de encefalopatia bilirrubínica. O diagnóstico é realizado por meio da triagem neonatal realizada em papel de filtro ou da dosagem sanguínea de G-6-PD. Formas jovens de hemácias G-6-PD deficientes podem apresentar atividade adequada e acompanhar-se de reticulocitose, resultando em dosagem falsamente normal da G-6-PD eritrocitária. Além disso, a grande frequência de icterícia sem anemia ou reticulocitose importante e a ausência de desencadeantes em RN ictéricos com deficiência de G-6-PD indicam que outros mecanismos estão envolvidos na fisiopatologia. Provavelmente, há a interação de dois genes: o que impede uma função normal da enzima eritrocitária impedindo a conjugação hepática adequada através da glicuronil-transferase – variante UGT1A1(TA)7 (Síndrome de Gilbert).
2. Icterícia pela "falta" do aleitamento materno: um dos principais fatores associados ao desenvolvimento de hiperbilirrubinemia significante na primeira semana de vida é atribuído à dificuldade na amamentação e à pouca oferta láctea com consequente perda de peso, > 7%, em relação ao peso de nascimento, às vezes acompanhada de desidratação. Essa condição propicia o aumento da circulação êntero-hepática da bilirrubina e a sobrecarga de bilirrubina ao hepatócito. Muitas vezes, esse aumento da bilirrubina é associado à alta hospitalar antes de 48 horas de vida e da falta do retorno ambulatorial em 1 a 2 dias após a alta hospitalar. Esses pacientes têm contribuído para reinternações em leitos de hospitais pediátricos, elevando os custos no âmbito da saúde pública. No caso em questão, o bebê ainda estava perdendo peso e a mãe estava com dificuldade na amamentação.
3. Icterícia pelo leite materno, que é mais aparente após a primeira semana de vida e persiste por duas a três semanas, podendo durar até três meses: tem sido descrita em 20% a 30% de todos os RN em aleitamento materno, sendo que 2% a 4% deles apresentam valores acima de 10 mg/dL com três semanas de vida, podendo chegar a 20-30 mg/dL por volta da segunda semana de vida. A partir daí, observa-se um declínio lento e gradual do nível de bilirrubina que pode permanecer elevado por 2 a 3 meses. Esses neonatos são saudáveis e evoluem com ganho de peso adequado e eliminações gastrintestinais normais. Além disso, não apresentam doença que justifique a presença de hiperbilirrubinemia indireta. Parece existir um fator no leite humano, ainda não identificado, que aumenta a absorção intestinal de bilirrubina, e a icterícia teria um início tardio, pois esse fator só aparece após a transição do colostro para o leite mais maduro.
4. Hipotiroidismo congênito: estes pacientes apresentam diminuição da atividade da glicuronil-transferase (enzima que conjuga a bilirrubina no fígado), podendo assim permanecer por semanas ou meses. A icterícia prolongada pode ser o único sinal do hipotiroidismo congênito. O diagnóstico é confirmado através da dosagem sanguínea diminuída de tiroxina (T4) e elevada de hormônio estimulante da tireoide (TSH), que é realizada no exame rotineiro de triagem neonatal em papel de filtro (exame do pezinho).
5. Coleções sanguíneas, sendo a mais comum o céfalo-hematoma: diagnosticado através do exame clínico do segmento cefálico do RN. Trata-se de uma tumoração de consistência elástica que respeita as suturas cranianas e se localiza na região parietal.
6. Outras: existem algumas condições que aumentam a circulação êntero-hepática de bilirrubina e sobrecarregam o hepatócito, por exemplo, malformações do trato gastrintestinal, como obstrução ou estenose hipertrófica do piloro, que é mais comum no sexo masculino e cuja sintomatologia clínica aparece na segunda ou terceira semana de vida.
Além de estabelecer uma causa para esta icterícia prolongada, devemos avaliar a necessidade de alguma intervenção terapêutica.
O tratamento mais utilizado para a icterícia é a fototerapia, que em um recém-nascido com 15 dias de vida estaria indicada com bilirrubina ao redor de 20, ou seja, recém-nascidos com icterícia zona 5 de Kramer (ver Fundamentação Teórica). Se a fototerapia não estiver indicada, devemos acompanhar a evolução da icterícia nesses RN.