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Darlene olha para o filho e começa a chorar, abraçando-o apertado, enquanto comenta: – Às vezes, não aguento nem dar de mamar muito tempo para ele, doutor. Começa a me dar uma coisa por dentro, que é melhor botar ele no berço logo antes que eu faça uma besteira. – comenta, envergonhada.
– E qual o problema disso, Darlene? Qual o problema de ficar com raiva? Esse é um sentimento humano que todos temos e não dá para escolher a hora nem a pessoa. Precisamos é entender o que está acontecendo com você para ficar tão brava. Só assim vamos poder te ajudar. – conclui o médico e olha para Darlene, aguardando uma resposta.
– Eu não sei o que acontece, doutor. Começo a dar de mamar e, quando vejo, ele já está cochilando ou sorrindo para mim. Ele é muito calmo. Bem diferente...
E, dizendo isso, Darlene cai no choro. Felipe passa a mão no ombro dela e complementa:
– Bem diferente do outro Danrley. Não é isso, Darlene?
– Isso mesmo, doutor. Não me conformo que tenham matado o meu menino. – continua Darlene, em prantos. Rita e Felipe ficam em silêncio, em apoio à dor de Darlene por algum tempo.
Depois de chorar um pouco, Darlene segue: – Ainda me sinto culpada e muito sozinha. Desde que o 'Dan' morreu, o Samuel só chega bêbado em casa. Chega e vai direto para o quarto do 'Dan'. Fica lá deitado na cama e, quando vejo, já está jogando as coisas na parede. Quando chego para acalmá-lo, ele começa a gritar comigo e manda eu ir cuidar do 'Dan' para ver se dessa vez a gente acerta. Não gosto quando ele chama o Danrley Anderson de 'Dan'. Às vezes tento corrigir o Samuel e ele desconta em mim. Até já me... – fica em silêncio.
– E você também não imagina nele o próprio 'Dan'?
– No começo sim, doutor. Mas depois fui vendo o quanto ele foi ficando diferente. O 'Dan' era mais agitado desde bebê. Acho que foi isso que foi me deixando brava. Ele é muito diferente e, no fundo, todos ficamos imaginando que a gravidez podia trazer o meu 'Dan' de volta.
– É, mas infelizmente você está vendo que não trouxe, né, Darlene? O Danrley Anderson é uma pessoa diferente do Danrley, mesmo tendo o mesmo nome. E ele é especial só por ser ele mesmo, não precisa ser outra pessoa. Olha esse sorriso lindo! – e aponta a criança sorrindo. – É sorriso de são-paulino!
– Ai, doutor, só o senhor mesmo para me fazer rir numa hora dessas. Mas, falando nisso, o Samuel já comprou um uniforme de corintiano para ele. – brinca Darlene.
– Ah, é? Então avisa para ele que daqui não sai mais um ibuprofeno para aquele pé dele. Mas, falando sério agora, Darlene. – Felipe muda o semblante e fita Darlene nos olhos.
– Então Darlene, você já falou duas vezes hoje dos problemas com Samuel... Quer falar um pouco mais? Você acha que podemos te ajudar? – encoraja Rita
– Sabe, doutora, desde que o Dan morreu ele tá diferente. Nunca tinha sido agressivo. Mas agora... – chora de novo.
– Darlene, você acha que ele pode te fazer mal? Já pensou em procurar ajuda? Aqui no posto ou em outro lugar? – diz Rita num tom acolhedor.
– Acho que não precisa, pois desde que ele começou a tratar aqui com vocês e está cuidando dos problemas de homem com o doutor, tá mais calmo. Disse que vai tomar os medicamentos e está se controlando. Me pediu desculpa também. Obrigado por ajudar com ele. – diz Darlene, enxugando as lágrimas.
– Imagino o quanto todos vocês estão sofrendo, inclusive o seu marido, com aquele jeito durão dele, mas ele resolveu se cuidar. E é importante que vocês possam conversar sobre isso em casa para se apoiar. Se você achar necessário, podemos fazer uma reunião aqui! Mas não vai ficar se arriscando sozinha, hein? Você é forte, mas não dá conta dum homem daquele tamanho! Mas aposto que nem na mesma cama estão dormindo. E, falando nisso, sexo só se tirar as teias de aranhas, não é? – brinca Felipe, aliviando o momento de tensão.
– Lá vem o senhor com suas adivinhações.
– Não é adivinhação, Darlene – diz Rita. Logo após o nascimento de uma criança, é normal que o casal se afaste um pouco, por vários motivos que podemos conversar depois. Mas é importante que não fiquem longe tempo demais a ponto de perderem a intimidade. Ser mãe não a impede de ser mulher. E uma mulher muito bonita, por sinal!
– Obrigado, doutora. É muito bom escutar isso. – sorri, discretamente.
– A Rita tem razão, Darlene. Daqui a pouco você e o Samuel vão estar felizes de novo... Você é uma mulher muito bonita e elegante. É até estranho não a ver arrumada como estávamos acostumados. O que tem acontecido? Nos últimos tempos, você perdeu o prazer e o interesse de se arrumar e de fazer suas coisas? Tem se sentido mais deprimida ou sem esperança?
– Isso mesmo, doutor. Depois da morte do 'Dan', comecei a ficar assim, mas logo em seguida engravidei e não deu tempo mais para pensar nessas coisas. Só que, depois que o Danrley Anderson nasceu, eu tenho ficado muito em casa e aí voltou toda a tristeza. Choro muito e vivo irritada. O Samuel, como vocês já sabem... Além disso, não tenho mais interesse em nada, nem em me arrumar. Me sinto feia e gorda.
– E o sono e o apetite, como estão?
– Normalmente eu durmo bem, feito uma pedra. Desde que o Danrley Anderson deixe. E o apetite está normal, até um pouco a mais eu diria, tanto que tenho engordado.
– E a memória, como está? Tem deixado a comida queimar ou esquecido a casa aberta?
– Não me lembro disso ter acontecido. Até porque lá em casa tudo gira ao redor de mim e, se eu me esquecer das coisas, a casa para.
– E tem pensado em se matar, Darlene?
– Deus me livre, doutor! Tenho ainda um filho para criar. Quero é ficar boa logo para voltar a trabalhar.
– É muito bom ver a força que tem para reagir, Darlene – diz Rita. Nos faz até repensar nossos próprios problemas.
– Com certeza, Rita. A Darlene é uma mulher muito forte e vai superar tudo isso. – e, virando para Darlene, Felipe continua. – Pois é, Darlene, acho que você está realmente com uma depressão, e esses sintomas condizem com o quadro. Só fico na dúvida se é necessário usarmos uma medicação para te ajudar. O que você acha?
– Se tiver algum outro jeito, eu prefiro, doutor. O senhor sabe que não gosto de tomar remédio e, além disso, fico com medo de passar no leite. – e espera apreensiva a resposta.
– Que bom, Darlene. Estava realmente pensando que você responde muito bem a nossas conversas e queria reservar a medicação só para o caso de você não melhorar.
– Além disso, a psicóloga do NASF vai poder nos ajudar nisso, se for preciso, Felipe – diz Rita. Eles se colocaram à nossa disposição quando os contatei por telefone.
– Ótimo, Rita. É bom que a Darlene saiba que tem toda uma rede de profissionais com quem pode contar na sua recuperação. Então, vamos fazer umas combinações para encerrar. Quando foi a última vez que você foi ao cemitério ver o 'Dan'?
– No enterro dele, doutor. Depois não tive mais coragem.
– Hummm... como eu imaginei. Então, vamos fazer o seguinte: tenho duas tarefas para você. A primeira é escrever uma carta de despedida com tudo o que você gostaria de dizer ao 'Dan' e ir ao cemitério no domingo ler para ele.
– Ai, doutor, não sei se consigo, não. – Darlene faz cara de assustada.
– Sei que vai ser difícil, mas vai ser muito importante para você e toda a sua família poder separar os vivos dos mortos. – fala de forma dura Felipe, tentando enfatizar que 'Dan' já está morto e que ela precisa agora cuidar dos que estão vivos. Se não conseguir ir agora, não tem problema, mas pelo menos vá começando a escrever a carta. – ameniza um pouco Felipe, vendo que Darlene ficou muito ansiosa.
– Assim é mais fácil, doutor. Acho que a carta até consigo fazer nesta semana. – fica mais aliviada Darlene.
– É um grande começo, Darlene. A segunda combinação é poder conversar com Samuel sobre a possibilidade de vocês virem aqui juntos em uma semana para falarmos mais sobre o 'Dan' e essas brigas de vocês. Quem sabe aqui fica mais fácil de vocês poderem conversar sobre isso, sem brigar? O que acha?
– É uma ótima ideia, doutor. Até porque ele confia muito no senhor. Obrigada por toda esta ajuda. Não sei o que seria da gente se não fossem vocês. – sorri, olhando para Felipe e Rita.
– Eu vou indo, então, Darlene. Vou deixar a Rita terminar de passar as informações da puericultura porque já tomei muito o tempo das duas. Tchau!
– Felipe, só mais uma coisa. Como ela suspendeu o aleitamento exclusivo, o que você acha de iniciarmos um método contraceptivo? – pergunta Rita.
– Bem lembrado, Rita. Mas podemos esperar mais algumas semanas, e quem sabe ela volta a dar o peito, não é, Darlene? Mas se tivermos que dar, em qual anticoncepcional você pensou?
– Estou vendo aqui que ela usou durante muito tempo o acetato de medroxiprogesterona injetável trimestral. O que você acha de voltar a usar esse método, Darlene?
– Eu prefiro mesmo injeção, doutora. O comprimido eu sempre esquecia de tomar. Mas vou voltar a dar o peito o tempo todo.
– Mas então quero te ver semana que vem e, conforme for, te dou a injeção para evitar filho, tá bom? – diz Rita.
– Ótimo, então. – responde Felipe, enquanto prepara a receita e entrega para Rita. Agora vou indo, mas te espero na próxima semana, Darlene. |
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