Daniel Almeida Gonçalves e Maria Luiza de Mattos Fiore
Transferência e contratransferência
O movimento de transferência-contratransferência está presente em qualquer relação terapêutica. Esse conceito, que começou a ser desenvolvido por Freud no início do século XX, diz respeito ao movimento de projeção que cada indivíduo faz em seus interlocutores e corresponde à repetição, na situação de adulto, de modalidades de relações vividas durante a infância.
Na prática em saúde, determinados estilos de interações são mais comuns, como a imagem protetora dos pais, situações amorosas com envolvimento sexual, ou mesmo situações autoritárias com abuso de poder.
De acordo com tais investimentos, as transferências são denominadas positivas quando criam um ambiente de simpatia e confiança favorável a uma relação terapêutica. No caso negativo, são possíveis sentimentos de revolta, disputa e outros que devem ser superados para que se consiga um vínculo terapêutico. Às vezes, podem ocorrer situações aparentemente positivas, em que o profissional é investido por uma paixão e é tomado como tão perfeito que, por um lado, pode ser muito sedutor; mas deve ser encarada com cuidado, pois a entrega do paciente é tal que não favorece uma real situação terapêutica, com suas limitações e riscos.
O aspecto contratransferencial diz respeito aos movimentos afetivos do profissional de saúde em reação ao que é projetado por parte da outra pessoa. Da mesma forma que a transferência do paciente para seu médico, entram em jogo reações afetivas de acordo com o estilo de personalidade, idade, sexo, condição social, comportamento e outros. Essas reações afetivas, impossíveis de ser evitadas, são impregnadas muitas vezes por lembranças infantis, além de outros fatores pessoais contingentes como cansaço e luto. Da mesma maneira que a pessoa em atendimento, o profissional não está imune a essas situações e pode não estar todo disponível para a sua prática naquele momento.
Um aspecto que frequentemente envolve a relação profissional de saúde e pessoa é a questão da distância social entre seus integrantes. Isso se expressa na possibilidade de escolha do profissional por parte do paciente. Enquanto nas camadas superiores da sociedade é possível fazer uma opção de acordo com os títulos e a reputação dos médicos ou outros profissionais, nas camadas populares isso não se aplica, daí os critérios utilizados por estes são menos específicos, como amabilidade, complacência e simpatia. Assim, em geral, o profissional pode ser percebido como membro do grupo dos patrões, professores e outros da camada dominante da população, representantes da legalidade. Isso se soma a barreiras linguísticas, diferenças lexicais e sintáticas, além do vocabulário especializado, que dificultam a comunicação entre eles. Esses ingredientes propiciam o desenvolvimento de preconceitos e desconfiança que devem ser evitados (BOLTANSKI, 1984).
Tudo isso favorece, ou não, a identificação com o sofrimento do indivíduo, que naquele momento pede e/ou necessita de ajuda. Existe também o risco de a identificação ser exagerada e trazer um excessivo desejo de cura, que leva à perda da objetividade necessária para a tarefa médica.
O cuidado que deve ser tomado é o de não atuar, não tomar atitudes de rejeição ou agressivas que não favoreçam o vínculo positivo, terapêutico. Isso só pode ocorrer se o profissional tiver contato e procurar compreender seus próprios sentimentos, que aparecem naquela relação profissional em particular.
Balint (1984) afirma que faz parte da tarefa médica não só pesquisar os sintomas físicos manifestos, mas também a "demanda latente" do paciente. Ou seja, entender seus verdadeiros desejos e necessidades contidos naquelas queixas somáticas. O médico não pode deixar de procurar o sentido inconsciente que se expressa por meio da linguagem consciente. Isso também é válido para outros profissionais da área da saúde.
Muitas vezes, a linguagem corporal é a única de que o paciente dispõe por ainda não ter acesso à palavra, como no caso de uma criança, ou por seu aparelho psíquico não lhe permitir a representação de seus afetos, ou mesmo por estar sobrecarregado de emoções diante de um luto recente.
Por outro lado, se for possível o profissional perceber quais foram os sentimentos que aquele paciente lhe despertou, isso pode ser de enorme valia para entender a demanda implícita do doente e o tipo de investimento que faz sobre o médico.
Entender a nossa contratransferência é um instrumento de trabalho que inclui todos os que lidam com atendimento às pessoas.
Portanto, é interessante, para estabelecer uma relação terapêutica, que seja feito um diagnóstico global. Este corresponde ao diagnóstico da doença com seus detalhes técnicos e a percepção de como o paciente encara essa doença. Para isso, é necessário perceber a associação de alguns traços de personalidade e como a doença se insere na história de vida do paciente, ou seja, as condições psicológicas e ambientais em que aparece a doença, como a pessoa reage a esta e que tipo de apoio tem do grupo familiar. Helman (2009) destaca este elemento como fundamental para estreitamento da relação terapêutica, apresentando a terminologia disease (doença) e illness (experiência de adoecer, enfermidade), utilizados no método clínico centrado na pessoa (STEWART, 2009). A Abordagem Centrada na Pessoa é uma tecnologia leve, fundamental aos profissionais da Atenção Primária.
Podemos dizer que a pessoa nos traz a enfermidade, carregada de experiências e expectativas, e o profissional de saúde – carregado de conhecimento científico –, racionaliza a queixa e a traduz em uma doença, para enquadrá-la no código da Classificação Internacional de Doenças (CID). Esse processo muitas vezes não considera os aspectos pessoais, familiares e sociais associados à doença, perdendo a capacidade de diagnóstico global da avaliação da enfermidade.