A transição demográfica no Brasil tem modificado as demandas sobre o sistema de saúde. O novo perfil da população faz com que a atenção se volte para as doenças crônico-degenerativas em adultos e, nas próximas décadas, venha estar cada vez mais focada nas sequelas destas doenças em idosos. Com a população envelhecendo, é necessário desenvolver novas estratégias de promoção de saúde, prevenção de doenças, diagnóstico, tratamento e reabilitação.
Não há outra faixa etária onde seja maior a variabilidade de condições clínicas entre os pacientes; seja aos 60, seja aos 90 anos, o estado funcional e de saúde dos idosos será a resultante da interação entre alguns fatores, como:
A consulta clínica de pessoas idosas deve sempre contemplar esta diversidade, que se apresenta como mais complexa do que a consulta de adultos ou crianças. Assim, o próprio modo de raciocinar e exercer a clínica deve ser diferente diante de idosos mais velhos, pois a redução da reserva de sistemas fisiológicos e múltiplos problemas concomitantes modificam a apresentação das doenças.
O declínio funcional de órgãos e sistemas ao longo do envelhecimento não é homogêneo
e varia amplamente de acordo com os hábitos de vida e a incidência e controle
de doenças, especialmente as doenças crônico-degenerativas. Dessa forma, não
é incomum encontrar pessoas com demência moderada, mas que apresentam completa
independência funcional (para deambular, se vestir e alimentar). Por outro lado,
há pacientes com cognição e autonomia intactas, mas fisicamente dependentes para
realizar a maioria das atividades cotidianas (por osteoartrose grave, por exemplo).
A partir de certo limite de declínio da reserva fisiológica, especialmente renal,
pulmonar, cardíaca e cerebral, o organismo perde a capacidade de suportar agravos;
e as descompensações de um sistema ou de todo o organismo passam a se manifestar.
Esse limite, entretanto, também não é homogêneo.
Em consequência, muitas vezes as manifestações de uma doença nem sempre ocorrem no sistema fisiológico acometido, mas, muitas vezes, no sistema mais frágil.
Frequentemente os sintomas e sinais por vezes são peculiares de idosos. Diante de um idoso com demência e confusão mental recente, você deve pensar, entre outras hipóteses, no infarto agudo do miocárdio. Diante de uma idosa com incontinência urinária recente, em cistite.
Além das consequências da redução da reserva dos sistemas fisiológicos, a fragilidade de um idoso será tanto mais importante quanto maior for o número de problemas clínicos.
A redução da reserva de um sistema fisiológico também contribuirá para a maior gravidade das doenças que o acometem. Este é o motivo da elevada letalidade das pneumonias em idosos e também da maior proporção de casos de úlcera péptica desencadeada por anti-inflamatórios, nesta faixa etária.
A saúde do idoso é a resultante de diversos fatores que interagem ao longo das décadas
de vida. Por este motivo, frequentemente os idosos apresentam múltiplas doenças
ou condições clínicas ao mesmo tempo, condição denominada
polipatologia.
Em algumas situações é difícil diferenciar o envelhecimento habitual de condições
patológicas, como no caso da redução do condicionamento físico X sarcopenia ou
das queixas de memória X demência. Esta diferenciação, no entanto, nem sempre
será imprescindível para tomada de decisões.
Por outro lado, a existência de múltiplos e simultâneos problemas não impede o curso bem sucedido do envelhecimento, que preserve níveis razoáveis de autonomia e independência. Com o aumento da proporção de idosos dentre os usuários do Sistema Único de Saúde, o próprio modo de desenvolver o raciocínio clínico deverá mudar. Em adultos, a presença de múltiplos sinais e sintomas leva ao diagnóstico de uma única síndrome ou doença, como insuficiência cardíaca, tuberculose, depressão.
Entre idosos, no entanto, há múltiplas causas provocando os múltiplos sintomas e sinais. E é comum nenhum deles ser predominante ou, quando há um predominante, não, necessariamente, é o sintoma relacionado à doença mais grave.
A complexidade do raciocínio clínico necessário para avaliar idosos tende a atrasar o diagnóstico e favorecer a evolução da doença, bem como piorar o prognóstico. Esta tendência é agravada pela própria interação entre as manifestações clínicas das múltiplas doenças.
Um desafio adicional nesses pacientes com polipatologia surge quando um problema de saúde desencadeia outro, que desencadeia um terceiro; ou quando o uso de medicamentos provoca efeitos adversos, que acabam sendo tratados por mais medicamentos, que provocam mais efeitos adversos. No áudio a seguir, ouça exemplos das interações entre as manifestações clínicas das múltiplas doenças.
A presença de múltiplos problemas e a redução da reserva fisiológica podem provocar o efeito cascata: a sucessão de problemas clínicos desencadeados progressivamente.
Uma consequência comum da polipatologia é a polifarmácia: a utilização de grande número de medicamentos . Assim é preciso ficar atento pois a prescrição de vários medicamentos aumenta as chances de efeitos e interações adversas. Além disso, as peculiaridades da farmacocinética e da farmacodinâmica em idosos justificam o surgimento de efeitos adversos aos medicamentos.
A “cascata iatrogênica” se refere à sucessão de efeitos adversos provocados por medicamentos utilizados para tratar os efeitos adversos provocados por outros medicamentos.
Alguns problemas comuns em idosos não geram queixas durante um longo período de sua evolução, podendo permanecer ocultos, “submersos”, como a parte principal de um iceberg. Outros são evidentes, mas podem não ser reconhecidos por uma equipe sem treinamento. E acabam piorando a qualidade de vida (como a incontinência urinária), oferecendo risco (como fraturas por osteoporose), podendo trazer consequências muito significativas no médio prazo (como a perda de visão provocada pelo glaucoma).
As principais queixas das pessoas idosas por vezes não correspondem aos seus principais problemas de saúde, como seria o caso de um idoso que se consultou para renovar a prescrição de um antidepressivo, mas cujo exame físico revelou a presença de anemia.
A redução da reserva fisiológica, a polipatologia, a polifarmácia e o efeito cascata exigem dos profissionais uma abordagem diferente daquela tradicionalmente empregada com crianças e adultos.
Imagine uma idosa que sofreu duas quedas em casa quando andava rapidamente pelo corredor, no meio da noite, para ir ao banheiro urinar.
Considere que ela tem baixa acuidade visual por causa de catarata, é dependente de clonazepam para dormir, apresenta hipotensão ortostática pela dose excessiva de anti-hipertensivos (que incluem nifedipina de dia - que tem provocado edema das pernas - e hidrocolorotiazida à noite) e tem osteoartrose dos joelhos com indicação para fisioterapia e uso de bengala.
Além disso, ela usa um chinelo que às vezes sai do pé e, na sua casa, no corredor mal iluminado que leva ao banheiro, há um tapete escorregadio.
A abordagem do idoso deve priorizar a redução do risco de uma nova queda, que poderia provocar uma fratura do colo do fêmur.
Com esta finalidade, diversas ações devem ser avaliadas e tomadas em conjunto pela equipe, como: a suspensão do benzodiazepínico, a retirada do diurético noturno, a redução da dose total de anti-hipertensivos com substituição da nifedipina, a fisioterapia para treino de marcha, de equilíbrio e de utilização de bengala. Valeria a pena a redução da ingestão de líquidos após as 18h, a recomendação de urinar logo antes de dormir e mesmo colocar uma comadre para que a idosa possa urinar no quarto sem ir ao banheiro. Outras ações simples seriam a recomendação para utilizar calçados mais firmes, o aumento da iluminação do corredor e a retirada ou fixação dos tapetes escorregadios. Com o intuito de reduzir no médio prazo o risco de quedas e fraturas seria importante programar a cirurgia de catarata e tratar a osteoporose - se houver - com bisfosfonatos, cálcio e vitamina D.
É imprescindível uma equipe multidisciplinar bem treinada, pois somente um conjunto de intervenções – incluindo modificações no domicílio – será capaz de reduzir o risco de fraturas.
Embora a maioria das doenças em idosos se apresente de forma habitual, muitas vezes as manifestações serão atípicas:
A seu ver, quais sintomas da coluna da direita são associados às doenças da coluna
da esquerda? Lembre-se que algumas doenças comuns podem se manifestar de
forma bastante diferente em pessoas idosas.
Clique na doença para ver a resposta:
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O profissional de saúde deverá conhecer tanto os sintomas que geralmente estão ausentes, quanto os sintomas que invariavelmente estão presentes. Em virtude da redução da reserva fisiológica do sistema respiratório, por exemplo, é raro observar pneumonia sem taquipnéia. Sintomas sistêmicos como astenia e hiporexia podem ser a manifestação de inúmeras doenças diferentes e, por vezes, os familiares e o próprio idoso podem erroneamente atribuir estes sintomas ao “envelhecimento”.
Embora as queixas mais recentes sejam especialmente importantes, é uma tarefa árdua determinar a época provável do início dos sintomas; descobrir que o início do quadro coincidiu com a retirada de um medicamento ou com eventos sociais (por exemplo, um neto que se divorciou) pode orientar a investigação.
Em idosos com “baixa reserva cognitiva”, o estado de delirium (confusão mental
aguda) pode ser indicativo de agravos tão diversos como constipação intestinal,
erisipela, insuficiência cardíaca ou efeitos adversos de medicamentos.
“Desânimo, falta de energia e dores no corpo” podem ser manifestações de doenças
tão diversas quanto hipertireoidismo, osteomalácia ou depressão.
Insônia pode ser a expressão clínica da ortopnéia ou da nictúria na insuficiência
cardíaca inicial.
- Perda de peso pode sugerir neoplasias ou ser provocada por próteses dentárias
mal ajustadas.
Exames complementares também devem ser interpretados com cautela em alguns idosos. Veja alguns exemplos:
• Ausência de leucocitose em um quadro infeccioso agudo pode ser consequência
da resposta inflamatória atenuada pelo envelhecimento;
• Na radiografia de tórax do idoso com pneumonia, a consolidação do parênquima
pulmonar por vezes só torna-se evidente após a correção da desidratação;
• Na densitometria óssea, a densidade mineral óssea pode estar falsamente
elevada em pacientes com osteoartrose.
• Valores de creatinina inferiores a 1,0 mg/dl podem corresponder à insuficiência
renal moderada a grave em idosas octogenárias com IMC 〈 20; nestes pacientes,
é imprescindível calcular o clearence de creatinina.
Como veremos a seguir, as peculiaridades das manifestações clínicas de algumas doenças em idosos são tão comuns que em vez de “atípicas”, poderiam ser consideradas apresentações “típicas de idosos”. Algumas delas são inclusive consideradas entidades nosológicas bem definidas, e denominadas “Gigantes da Geriatria”.
Por serem tão comuns e de diagnóstico e manejo tão complexo, algumas síndromes geriátricas são denominadas gigantes da geriatria. Praticamente qualquer agravo à saúde do idoso pode se manifestar através de delirium, incontinência urinária, instabilidade postural e quedas e contribuir para a imobilidade. Iatrogenia e doenças neuropsiquiátricas, como demências e depressão, completam o grupo de gigantes.
DEPRESSÃO, DEMÊNCIA E DELIRIUM
Por vezes reunidas em um grupo denominado “insuficiência cognitiva”,
demência, delirium e depressão muitas vezes representam um desafio para
os profissionais da UBS. A depressão é muito prevalente em idosos e o
quadro clínico pode ser bastante peculiar. Em idosos ela geralmente se
associa a eventos vitais como viuvez e doenças incapacitantes, fazendo
com que, muitas vezes, sejam erroneamente consideradas “um estado normal”
da velhice.
Dentre idosos com depressão, em vez dos tradicionais sintomas de tristeza e sentimento de culpa, são mais comuns irritabilidades e as queixas somáticas (como alterações do sono e fadiga, fraqueza e dores difusas). As demências acometem mais de um terço dos idosos com 85 anos no Brasil. Na doença de Alzheimer, a mais comum, o prejuízo da memória recente associa-se precocemente a distúrbios da linguagem, habilidades executivas e visuo-espaciais. Sintomas como isolamento social, irritabilidade e a própria depressão, por outro lado, podem preceder a síndrome demencial por alguns anos. O mesmo vale para o comprometimento cognitivo leve, que pode preceder a demência com acometimento isolado, porém significativo da memória recente.
Ao contrário da demência, o quadro com flutuação da cognição e comportamento ao longo do dia e déficits de atenção de início abrupto sugere o diagnóstico de delirium, ou confusão mental aguda. Este é considerado uma urgência em se tratando de pessoas idosas, em virtude da gravidade potencial das doenças subjacentes. Frequentemente é o marcador precoce de distúrbios tão diversos como hipoxemia, bacteremia, e hematoma subdural.
INCONTINÊNCIA URINÁRIA
Embora algum grau de incontinência urinária acometa muito idosos residentes
na comunidade, ela não será relatada pelos pacientes em uma consulta
de rotina, a menos que seja investigada com alguma insistência. Os dois
tipos mais comuns de incontinência urinária são:
- A instabilidade do detrusor, que se manifesta como um desejo imperioso de urinar e perda de um grande volume de urina;
- A incontinência de esforço, que se manifesta pela perda de pequenos
volumes de urina provocada por situações que aumentam a pressão intra-abdominal,
como a tosse, espirros ou levantar-se da cama.
Em algumas situações a incontinência urinária é transitória e remite após a remoção da causa.
- Tratamento de sinusite que provocava tosse;
- Substituição de um diurético por anti-hipertensivo que não aumenta
a diurese;
- Tratamento de osteoartrose facilitando a deambulação até o banheiro.
INSTABILIDADE POSTURAL, QUEDAS E FRATURAS
Diversos estudos demonstram que cerca de 1/3 dos idosos sofrem quedas
a cada ano e 2% delas provocam fraturas proximais do fêmur. A mortalidade
alcança 25% nos primeiros seis meses e, dentre os sobreviventes, a maioria
deixará definitivamente de deambular com independência se não receber
assistência adequada (OMS, 2007). Apesar destas estatísticas, observa-se
que a indagação sobre a ocorrência de quedas não faz parte de uma anamnese
habitual a menos que o profissional tenha conhecimento em geriatria e
gerontologia. Entretanto, é importante o questionamento sobre a ocorrência
de quedas, pois pode ter como consequência a diminuição ou perda da capacidade
funcional. Como exemplo de questões que podem auxiliar na indagação sobre
quedas, veja a seção Quedas, da 4ª Edição da
Caderneta de Saúde da Pessoa Idosa.
As causas de quedas podem ser agrupadas em fatores ambientais (como o tapete escorregadio na sala) ou intrínsecas (como a hipotensão ortostática). Importa não somente saber a frequência e consequências das quedas, mas principalmente as situações em que ocorreram e os fatores envolvidos, para que as causas possam ser tratadas e/ou removidas. O surgimento recente de quedas muitas vezes é um alerta de que “algo não vai bem”, requerendo ampla investigação.
IMOBILIDADE
Síndrome de Imobilidade é o desfecho de um longo processo de perda de
independência. Esta situação clínica é muito comum em instituições de
longa permanência.
A síndrome nunca se instala subitamente. Ela reflete, muitas vezes, a assistência insuficiente ao idoso. Seu protótipo é o idoso acamado, desnutrido, incontinente, com fecaloma, contraturas irreversíveis nos membros, úlceras de pressão e déficit cognitivo, que falece por pneumonia de aspiração ou trombose venosa profunda.
IATROGENIA
A Iatrogenia é o gigante da geriatria que se refere aos males causados
ao paciente por ações dos profissionais de saúde. Estes podem resultar
inclusive de procedimentos bem indicados. No entanto, na maioria das
vezes, a iatrogenia em geriatria resulta de imprudência, imperícia e
falta de moderação ou crítica ao se prescrever medicamentos, ou uma intervenção
não medicamentosa. A frase “to begin slow and go slow” (começar devagar
e ir devagar) nos lembra que, à exceção dos antibióticos, doses necessárias
para idosos geralmente são menores do que as de adultos, e que a titulação
progressiva é uma excelente estratégia. A frase foi atualizada recentemente:
“to begin slow and go slow, but go!” (começar devagar e ir devagar, mas
vá!), reforçando a necessidade de se atingir doses terapêuticas.
A redução da reserva de sistemas fisiológicos, polipatologia, apresentação atípica de doenças, efeito adverso de medicamentos e diagnóstico tardio tornam os problemas nos idosos mais complexos do que em adultos. Para gerenciar o cuidado ao idoso, é necessário:
IDENTIFICAR PRIORIDADES
Diante dos casos agudos, a prioridade é afastar as doenças graves. Lembre-se
das manifestações atípicas: doenças cardíacas podem se cursar com quadros
de confusão mental; pneumonia pode se exteriorizar como incontinência
urinária. Doenças mais comuns são mais comuns, e doenças incomuns são
incomuns; mas na geriatria, manifestações atípicas de doenças comuns
são ainda mais frequentes que doenças incomuns.
TER UMA ABORDAGEM MULTIDISCIPLINAR
A presença de múltiplos determinantes de doenças é um dos motivos pelos
quais as condutas mais efetivas são as que envolvem o diagnóstico e abordagem
multidisciplinar da equipe. Algumas demandas muito comuns de idosos frágeis
são, por exemplo, a necessidade de fonoterapia para distúrbios da deglutição,
fisioterapia para treino de marcha e os cuidados de enfermagem para tratamento
de úlceras de pressão.
TRAÇAR METAS REALISTAS
É importante ter clareza do que se deseja alcançar com as intervenções.
As metas não devem ser muito ambiciosas, mas eficientes. A recuperação
de apenas 10% ou 20% em uma condição desencadeia um ciclo virtuoso de
melhora em outras áreas, resultando em ganho funcional significativo.
GERENCIAR TAREFAS
Diante de uma lista de problemas extensa é necessário priorizar as medidas
imediatas para as condições que representam maior risco. Além disso,
é importante o gerenciamento de outras condutas, como imunizações e investigação
diagnóstica de neoplasias, especialmente em pessoas com histórico familiar,
e/ou que apresentem queixas e sintomas , que devem ser incluídos na programação
de médio prazo.