Caso clínico 2
Sr. Joaquim: O pigarro não me larga

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    Síntese

    Paciente portador de múltiplas doenças crônicas sem repercussão funcional, com baixa adesão às medidas terapêuticas propostas em razão dessas condições e com elevada frequentação da unidade de saúde em razão de sintomas inespecíficos e autolimitados.

    Objetivo

    O caso ilustra uma situação típica em que o paciente tem outras necessidades de saúde percebidas, outras prioridades, distintas de suas doenças crônicas, muito frequentemente assintomáticas, que costumam ser elencadas como prioridade pelo profissional de saúde. Ressalta o impacto negativo que uma abordagem excessivamente centrada nas doenças pode ter para a relação médico paciente e, consequentemente, para o cuidado à saúde dos pacientes com multimorbidade.

  • Joaquim, 69 anos de idade, sempre trabalhou muito! Criou 5 filhos com os proventos de seu ofício como carpinteiro. Teve uma vida muito sofrida, mas conseguiu vencer de forma honesta, apenas pelo esforço de suas mãos. Tem muito orgulho disso!

    Hoje tem dias mais amenos. Aposentou-se e vive com a esposa. Os filhos já estão criados. Eles vivem, cada um, em um canto do país, seguindo o tino do pai pelo trabalho.

    Não teve muito estudo. Começou muito cedo na profissão. Mas esforçado que é, aprendeu a ler e a escrever bem. E também lida com números razoavelmente bem, por exigência do trabalho que fazia.

    Puxou a mãe e desenvolveu um diabetes tipo 2 já há cerca de 10 anos. Além disso, há ainda a hipertensão arterial e a gota, heranças do pai. Da mãe, tem ainda o hipotireoidismo. E com o pai aprendeu que “comida precisa ter sustância” e atividade física é “coisa de quem não tem serviço”. Assim, não é de se admirar que Joaquim tenha também níveis elevados de colesterol. Além disso, faz questão de reafirmar que não fuma e nem faz uso de bebidas alcoólicas.

  • No prontuário do Dr. Juliano, no Centro de Saúde Jardim Europa, consta que Joaquim faz uso das seguintes medicações:

    Prontuário

    Entretanto, não costuma usar todos esses medicamentos. Faz questão de usar os medicamentos “da tireoide e do diabetes” (a lembrança da condição de saúde da mãe no final da vida não o deixa esquecer). Dos anti-hipertensivos usa um ou outro com certa regularidade. Normalmente, usa mais doses quando acha que a pressão arterial está elevada. Do ácido acetilsalicílico e da sinvastatina raramente se lembra, toma os medicamentos apenas quando acha que está precisando “ralear um pouco o sangue”. O alopurinol costuma usar só mesmo “quando é necessário”. Felizmente, não tem precisado usar, com frequência, a colchicina. Esse comportamento é motivo de embate frequente com o Dr. Juliano, e não foi diferente na consulta mais recente.

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    Sr. Joaquim na Unidade de Saúde

    Juliano: Bom dia, Joaquim! Em que posso ajudá-lo desta vez? (é a terceira vez que Joaquim vai ao centro de saúde nos últimos 30 dias; nas duas vezes anteriores, os motivos da consulta haviam sido lombalgia e flatulência).

    Joaquim: Bom dia, Dr. Juliano! Como te disse na consulta passada, o pigarro não me larga.

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    Joaquim tem um discreto pigarro crônico. Já foi submetido a extensa propedêutica em função disso. Nesse processo foram descartadas as hipóteses de que o pigarro fosse relacionado a refluxo gastroesofágico, asma, rinite, lesões na laringe, infecções respiratórias, entre outras condições. Ao fim, entendeu-se que o pigarro de Joaquim não é decorrente de uma doença, e sim de um maneirismo, algo que não oferece riscos para a saúde.

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    Sr. Joaquim na Unidade de Saúde

    Juliano: (interrompendo rapidamente Joaquim para que ele não volte a relatar toda a história do pigarro) Sim, Sr. Joaquim. Lembro-me de termos realizado vários exames para avaliar isso. Ao final, todos estavam normais.

    Joaquim: Sim, Dr. Juliano. Mas esse pigarro não me larga. Fico achando que preciso fazer algum outro exame.

    Juliano: E quanto aos medicamentos de hipertensão, diabetes, gota, tireoide e colesterol, usando todos regularmente?

    Joaquim: Sim, Dr. Juliano. Estou usando quase sempre. Mas o que está me incomodando mesmo é o pigarro.

    Juliano: Entendo. Mas o pigarro está mais intenso ou frequente? Teve febre ou algum outro sintoma que não havia antes?

    Joaquim: Não, Dr. Juliano. Nada disso. O pigarro continua o mesmo.

    Joaquim: Pois bem, Joaquim. Deixe-me então examiná-lo e veremos o que pode estar havendo.

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    Juliano examina Joaquim e não observa nenhuma alteração na ausculta pulmonar, na oroscopia ou na rinoscopia anterior. Também a palpação da região cervical não revela massas, pontos dolorosos ou linfadenomegalias. Na avaliação do sistema cardiovascular, entretanto, a pressão arterial é aferida em 160/100 mmHg.

    Sr. Joaquim na Unidade de Saúde

    Juliano: Sr. Joaquim, não vi no exame nenhum sinal que nos cause preocupação quanto ao pigarro. Os pulmões estão limpos e está tudo bem na garganta.

    Joaquim: Quem bom, Dr. Juliano. Estou realmente preocupado com esse pigarro.

    Juliano: Entendo, Joaquim. Por outro lado, a pressão arterial está mais alta. Seria importante que o senhor fizesse o uso mais regular dos medicamentos.

    Joaquim: Não se preocupe, Dr. Juliano. A pressão só está assim porque hoje saí de casa muito cedo e não pude tomar as medicações da manhã ainda.

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    Então se despedem, com Juliano voltando a insistir na importância do uso regular das medicações prescritas. Combinam um retorno em 30 dias, para que a pressão arterial pudesse ser novamente aferida após um período de uso das doses corretas dos anti-hipertensivos. Porém, na semana seguinte, Joaquim já está de volta ao consultório de Juliano. Dessa vez, queixando-se de estalos no tornozelo direito aos movimentos. Como não poderia deixar de ser, a consulta prossegue de forma bastante semelhante ao que já se tornou regra para ambos.

  • O que poderia ter sido feito de forma diferente na abordagem dessa situação?

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    Comentários:

    Juliano poderia ter explorado melhor por que realmente o pigarro incomoda Joaquim, a razão, ou razões, pelas quais ele insiste na realização de exames mesmo diante de toda a exploração já realizada. Os sentimentos, os medos e as ideias que um sintoma pode despertar são fenômenos que não possuem uma lógica racional e não têm necessariamente correspondência com a fisiologia, a anatomia ou a patologia.

    A melhor maneira de se explorar esse campo é pela narrativa do próprio paciente, permitindo que ele fale livremente sobre o sintoma e, eventualmente, estimulando que o paciente reflita sobre o que lhe aflige no que tange o problema de saúde em questão. Ao se abrir mão da narrativa do paciente na interpretação dos sintomas, frequentemente, direciona-se o cuidado no sentido de exames complementares desnecessários e tratamentos inapropriados.

  • Quais elementos na anamnese não lhe parecem apropriados?

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    Comentários:

    Logo no início da consulta, Juliano interrompe Joaquim precocemente. A interrupção precoce na narrativa do paciente sobre sua percepção do problema tende a enviesar a anamnese e, muitas vezes, o próprio diagnóstico, além de frequentemente impedir que os anseios do paciente sejam colocados em pauta. Idealmente, a consulta deve ser iniciada com perguntas abertas, pouco direcionadas, que sirvam de estímulo para que o paciente fale de seus sintomas livremente.

    Além disso, Juliano logo procurou pautar a consulta, abordando os problemas que lhe eram mais convenientes. Nesse momento fica claro que as prioridades na consulta não são as do paciente. Na prática clínica, é preciso que o médico esteja sempre muito atento para evitar pautar a consulta, pois é natural que se prefira tratar dos problemas dos quais temos mais domínio e isso, algumas vezes sutilmente, faz com que o profissional paute a consulta quase sem perceber.

    É importante destacar que, quando o médico pauta a consulta da forma ilustrada no caso, os pacientes podem perder o interesse no que está sendo proposto, pois entendem que o que está sendo abordado não é o que eles procuravam. A não adesão a um plano de cuidados (deixar de usar um medicamento prescrito ou de realizar exames solicitados, por exemplo) podem ser indícios de que está havendo esse problema no campo da comunicação clínica.