1. Lancetti (2011) e Feneric, Pereira e Zeoula (2004) relatam o caso de uma agente comunitária de saúde (ACS) que, tendo encontrado numa visita a mãe e seus filhos pequenos prestes a tomar veneno de rato, por falta absoluta de alternativas de vida (desemprego, falta de comida, ordem de despejo), conseguiu que alguém acompanhasse a família naquele instante até que ela agenciasse alternativas que produzissem um desvio na situação. Buscando ajuda na unidade de saúde e encontrando poucos profissionais que pudessem ajudar, começou sua trajetória de agenciamento de recursos, no sentido de evitar que o Conselho Tutelar, cumprindo sua função, abrigasse as crianças e separasse os membros da família. Conseguiu negociar, por um período, alimentação no mercado da área, negociou a suspensão do despejo junto ao dono do imóvel e conseguiu viabilizar um emprego. Tal situação provocou um desvio no caminho que a família estava tomando e possibilitou a abertura de novas possibilidades, modificando também o olhar das outras personagens que compunham a cena. Cada lugar onde esta ACS buscou recursos para resolver o problema da família se constituiu em um novo fluxo em conexão que ao final compôs uma rede ativada por ela mesma. Este é um exemplo de uma rede “informal” ou “rizomática” que é construída conforme a necessidade singular, neste caso, da usuária e sua família, que teve como principal protagonista o próprio trabalhador. É óbvio que isso não resolveu todos os problemas da família, mas permitiu abrir novas perspectivas, e fazer com que as equipes da rede de serviços percebessem a necessidade de acompanhar a família e construir junto dela um projeto de vida que enriquecesse a existência.
  2. Uma profissional que trabalha em um CAPS ad contou-me a seguinte história: certa vez o CAPS ad recebeu a visita da mãe de um usuário do serviço, pedindo ajuda pois há alguns dias o mesmo permanecia na “biqueira”, utilizando crack com um grupo, sem retornar para casa. O CAPS percebera a ausência de seu usuário durante alguns dias, mas não tinha noção do que estava acontecendo. A equipe então decidiu que deveria ir ao encontro do usuário do serviço oferecer ajuda e manifestar sua preocupação. Era a primeira vez que esse CAPS vivia uma situação parecida, e os profissionais ficaram muito inseguros, se perguntando se era papel do CAPS ir até aquele território. Após o diálogo dos profissionais do CAPS com o usuário na “biqueira”, este concordou em ir ao CAPS e cuidar-se um pouco. Em repouso no CAPS, o usuário começou a sentir-se mal, e a equipe percebeu que alguns agravos clínicos estavam surgindo, exigindo o atendimento clínico e a observação no serviço de urgência e emergência. Acompanharam o usuário e a mãe até o local e, depois de horas, o rapaz recebeu alta. Como havia um importante conflito entre o usuário e parte de sua família, observou-se que estrategicamente não seria adequado que o usuário retornasse para sua casa. Como o CAPS ad não funcionava 24h, e como não havia uma Unidade de Acolhimento (UA) da Rede de Atenção Psicossocial, negociou-se com um abrigo da assistência social o pernoite durante alguns dias. Contudo, havia uma solicitação do abrigo de que algum profissional do CAPS desse uma retaguarda no abrigo, durante parte da noite, pois eles não se sentiam seguros, já que, além da dependência, o usuário do CAPS experimentava um sofrimento psíquico grave, com histórico de ter vivido surtos psicóticos. Ele dormiria no abrigo e passaria o dia no CAPS. O CAPS manteve esse esquema, e a equipe se dividiu para acompanhar aquele usuário durante parte da noite, o que permitiu fortalecer o vínculo com ele e descobrir novos desejos para a construção de seu projeto de vida, além de possibilitar longas negociações e atendimentos ao núcleo familiar, reorientando o trabalho de acompanhamento do serviço à família.
  3. João, um senhor de 45 anos que há 10 anos vivia nas ruas, utilizando múltiplas drogas, foi conhecido pela equipe do consultório de rua, que estabeleceu um diálogo com ele durante vários meses. Inicialmente o diálogo tinha a intenção conhecer mais sobre sua história, sobre sua forma de entender o mundo, e para oferecer alguns cuidados clínicos básicos. Em algumas das vezes, a equipe do consultório de rua trouxe consigo um profissional do CAPS ad III, no sentido de que este conhecesse João, e pudesse também ofertar o serviço como possibilidade de apoio. João foi num desses dias ao CAPS acompanhado pelos profissionais. Ficou um tempo, alimentou-se, assistiu um pouco de televisão, conheceu vários usuários e profissionais, e depois começou a se vincular mais ao profissional do CAPS que ia visitá-lo nas ruas. Este foi escrevendo a narrativa de vida de João, e lendo para ele, como se fosse um livro de sua vida. Em alguns dias em que João estava com uma intoxicação leve, que não exigia a retaguarda do hospital geral, este aceitou dormir no CAPS, como forma de ter alguém ao lado e recorrer menos às drogas. Com o tempo, houve o recomeço de uma aproximação com a família de João. Não se configurou nenhuma possibilidade de retorno de João à sua antiga casa, nem ele nem a família queriam isso; queriam apenas aproximar-se e manter contato. Contudo, João em algum momento optou por procurar meios de sair da rua e de ter um lugar seu para morar. A equipe do CAPS lhe ofereceu a possibilidade de ser acolhido numa Unidade de Acolhimento (UA) durante alguns meses, e João aceitou a proposta. Durante o dia, João passou a participar de alguns projetos do CAPS em pareceria com outras instituições. Passou a frequentar o EJA (Educação de Jovens e Adultos), e a participar de um projeto de economia solidária que o CAPS agenciou. Tratava-se de uma lanchonete aberta numa parceria entre o CAPS, a secretaria de trabalho do município e uma ONG que desenvolvia a função de incubadora de cooperativas. Além disso, com o recurso que ganhava no trabalho, João retomou o hábito de assistir a jogos de futebol no estádio, e retomou o contato com a igreja (esta oferecia ao CAPS a quadra de esportes que possuía, para que os usuários do CAPS jogassem futebol com os adolescentes da região). A participação na igreja lhe rendeu várias amizades, e uma projeção importante nessa comunidade. Recebeu então a proposta de trabalhar na igreja, realizando o papel de zelador durante a madrugada e, para isso, também receberia um salário. Trabalharia na lanchonete durante o dia e na igreja à noite, como zelador. Foi quando deixou a UA. Posteriormente, preferiu alugar um quarto apenas seu e desenvolver o trabalho de zeladoria apenas até as 23h. O convívio com os parceiros de trabalho da lanchonete e com os usuários do CAPS abriu-lhe também a possibilidade de participar de muitos eventos de mobilização política em torno da luta antimanicomial. Com o apoio do pessoal da lanchonete, da igreja, do CAPS, passou a ser um dos representantes da associação de usuários, e a viajar para muitos eventos, quando então foi descobrindo que o mundo era muito maior do que parecia. João ainda utilizava drogas, mas elas passavam a ocupar outro lugar em sua vida: situações de descontração, fora do horário de trabalho, longe dos holofotes. A participação no movimento antimanicomial, que questionava o novo movimento de internação compulsória, lhe possibilitou ressignificar seu lugar no mundo. Já não era apenas um usuário de drogas, já não era apenas um usuário do CAPS e da RAPS, era concomitantemente uma pessoa que descobria novos prazeres, novos desafios, tentando superar novos medos que surgiam.