Além do contexto histórico, devemos entender o contexto cultural e social em que estamos inseridos antes de enveredar para a discussão bioética. Algumas vezes nem percebemos quais são as ideias que nos cercam e que podem dificultar a adoção de uma postura realista (nesse contexto, adotamos o conceito de que uma postura realista é aquela que considera todos os aspectos de uma situação ou realidade).
Mas a que nos referimos quando falamos de contexto cultural ou social? Destacamos três modalidades que exercem atualmente grande influência na reflexão ética: o individualismo, o hedonismo e o utilitarismo.
Individualismo
No seu formato mais radical, o individualismo propõe que a atitude mais importante para tomarmos uma decisão seja a reivindicação da liberdade, expressa na garantia incondicional dos espaços individuais. Obviamente todos concordam que a liberdade é um bem moral que precisa ser defendido. Mas, nesse caso, trata-se de uma liberdade que se resume à busca de uma independência total.
Contudo, essa independência não é possível, pois nós somos seres sociais, frutos de relações familiares e dependentes de vínculos sociais. Essas relações determinam limites às liberdades individuais e impõem responsabilidades diante das consequências dos atos individuais na vida dos outros. Os vínculos nos fortalecem, a independência nos fragiliza. Não podemos falar de "liberdade" sem considerar a "responsabilidade" dos nossos atos.
Muitas vezes, definimos liberdade como na seguinte frase: "Minha liberdade termina quando começa a liberdade do outro". Entretanto, ao limitarmos a compreensão do conceito de liberdade a essa frase, quem for mais "forte" determinará quem será "mais livre". Nessa lógica, o conceito de autonomia fica enfraquecido, pois só os "mais fortes" conseguirão exercer a sua liberdade.
Para que todos tenham o direito de expressar a sua liberdade, é preciso atrelar esse conceito ao de responsabilidade, pois todos os nossos atos têm alguma consequência para outras pessoas. Na lógica individualista, esse princípio é absoluto. Contudo, o princípio ético da autonomia é empregado em seu verdadeiro valor quando implica o reconhecimento de que cada pessoa humana merece ser respeitada nas suas opiniões.
Hedonismo
A segunda corrente cultural e social que nos cerca é o hedonismo. Na lógica hedonista, a supressão da dor e a extensão do prazer constituem o sentido do agir moral. Falar em suprimir a dor e estender o prazer, em um primeiro momento, parece ser algo positivo.
Então quando começa a distorção? Quando essa busca se torna o único referencial para todas as nossas ações. Este é o hedonismo. O desejo de felicidade é reduzido a uma perspectiva de nível físico, material, sensorial (e felicidade é muito mais do que isso!).
Quando falamos em felicidade em um sentido mais amplo, estamos nos referindo a algo bem maior do que prazer físico, a algo que pode existir até em condições em que a dor física ou um limite físico se manifesta. Entretanto, se reduzirmos tudo à questão de eliminar a dor e estender o prazer, colocamo-nos em uma perspectiva terrena, isto é, material, quase que fisiológica ou neurológica.
Na reflexão ética, o predomínio dessa lógica hedonista faz com que o conceito de "vida" fique reduzido a essas expressões sensoriais de dor e prazer. Logo, para o hedonismo, uma vida que ainda não tem ou que já perdeu "qualidade de vida" não seria uma vida digna de se levar em consideração, não seria uma vida digna de ser vivida. A "qualidade de vida" para o hedonismo é interpretada como eficiência econômica, consumismo desenfreado, beleza e prazer da vida física. Ficam esquecidas as dimensões mais profundas da existência, como as interpessoais, as espirituais e as religiosas. E esquecer (ou não considerar) essas dimensões se torna um risco para a interpretação correta da expressão "qualidade de vida".
Na lógica hedonista, vive-se com "qualidade de vida" apenas quando é possível viver como os personagens das novelas da televisão: jovens "sarados" e bonitos; este é o estereotipo do hedonismo. Mas e quem não é assim? Não são pessoas dignas? Não têm valor como pessoa humana? É claro que têm! Por isso, essa corrente de pensamento deve ser analisada com muito cuidado, para que ela não se torne o único sentido do nosso agir moral!
Utilitarismo
A terceira corrente cultural (e social) que nos influencia é o utilitarismo. Nessa perspectiva, as nossas ações se limitam a uma avaliação de "custos e benefícios". O referencial "ético" para as decisões é ser bem-sucedido; o insucesso é considerado um mal. Só o que é útil tem valor.
Em princípio, valoriza-se algo positivo: o justo desejo de que nossas ações possam ser frutíferas. Mas o problema desse raciocínio utilitarista é que, com facilidade, pode-se entender que "só o que é útil tem valor". E isso também não é verdade!
Em uma sociedade capitalista, nossas ações são determinadas pelo mercado. Isso significa que aquelas pessoas consideradas improdutivas, aquelas que representam um custo para a sociedade, aquelas que perderam (ou que nunca tiveram) condições físicas ou mentais para participar do sistema de produção de bens e valores de forma eficiente, são classificadas como "inúteis". É o caso dos idosos, dos deficientes físicos, das crianças com problemas de desenvolvimento etc. Nessa lógica utilitarista, não vale mais a pena – ou é muito oneroso – defendê-los, ampará-los, incentivá-los.
Contudo, não é ético que nossas ações fiquem restritas a essa correlação entre custos e benefícios. Pessoas com necessidades especiais e aquelas consideradas vulneráveis devem ser consideradas dignas de respeito; são pessoas humanas, e isso é condição suficiente para que sejam respeitadas. Além disso, o Estado deve protegê-las sempre que possível.