Bioética

Cilene Rennó Junqueira


Os princípios da Bioética

Após a compreensão desse fundamento (o respeito pela pessoa humana), podemos utilizar "ferramentas" para facilitar o nosso processo de estudo e de decisão sobre os diversos temas de Bioética. A essas ferramentas chamamos princípios.
Esses princípios foram propostos primeiro no Relatório Belmont, de 1978, para orientar as pesquisas com seres humanos e, em 1979, Beauchamps e Childress, em sua obra Principles of biomedical ethics, estenderam a utilização deles para a prática médica, ou seja, para todos aqueles que se ocupam da saúde das pessoas.

A utilização desses princípios para facilitar o enfrentamento de questões éticas é muito comum entre os americanos e os brasileiros.

Passaremos a explicar esses princípios (considerados nossas "ferramentas de trabalho").

Beneficência/não maleficência

O primeiro princípio que devemos considerar na nossa prática profissional é o de beneficência/não maleficência (também conhecido como benefício/não malefício). O benefício (e o não malefício) do paciente (e da sociedade) sempre foi a principal razão do exercício das profissões que envolvem a saúde das pessoas (física ou psicológica).

Beneficência significa "fazer o bem", e não maleficência significa "evitar o mal". Desse modo, sempre que o profissional propuser um tratamento a um paciente, ele deverá reconhecer a dignidade do paciente e considerá-lo em sua totalidade (todas as dimensões do ser humano devem ser consideradas: física, psicológica, social, espiritual), visando oferecer o melhor tratamento ao seu paciente, tanto no que diz respeito à técnica quanto no que se refere ao reconhecimento das necessidades físicas, psicológicas ou sociais do paciente. Um profissional deve, acima de tudo, desejar o melhor para o seu paciente, para restabelecer sua saúde, para prevenir um agravo, ou para promover sua saúde.

Autonomia

O segundo princípio que devemos utilizar como "ferramenta" para o enfrentamento de questões éticas é o princípio da autonomia.

De acordo com esse princípio, as pessoas têm "liberdade de decisão" sobre sua vida. A autonomia é a capacidade de autodeterminação de uma pessoa, ou seja, o quanto ela pode gerenciar sua própria vontade, livre da influência de outras pessoas.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, que foi adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas de 1948, manifesta logo no seu início que as pessoas são livres. Nos últimos anos, tem sido frequente a busca pela liberdade (ou autonomia). Nos casos de atendimento clínico de pacientes, podemos mencionar o Código de Defesa do Consumidor, o qual, em alguns de seus artigos, garante proteção às pessoas que buscam serviços de saúde, por exemplo, no que diz respeito ao direito de ser suficientemente informada sobre o procedimento que o profissional vai adotar.

Para que o respeito pela autonomia das pessoas seja possível, duas condições são fundamentais: a liberdade e a informação. Isso significa que, em um primeiro momento, a pessoa deve ser livre para decidir. Para isso, ela deve estar livre de pressões externas, pois qualquer tipo de pressão ou subordinação dificulta a expressão da autonomia.

Em alguns momentos, as pessoas têm dificuldade de expressar sua liberdade. Nesses casos, dizemos que ela tem sua autonomia limitada.

Vejamos o exemplo das crianças. Em razão de seu desenvolvimento psicomotor, a criança terá dificuldade de decidir o que é melhor para a saúde dela. Ela terá, ao contrário, uma tendência em fugir de todo tratamento que julgar desconfortável. Por essa razão, caberá aos responsáveis pela criança decidir o que deverá ser feito, qual tratamento será mais adequado, porque o responsável deseja que a saúde da criança se restabeleça e que o melhor tratamento seja feito.

Existem outras situações em que percebemos a limitação de autonomia de uma pessoa. Os pacientes atendidos em clínicas de Instituições de Ensino podem manifestar essa limitação de seu poder de decisão, principalmente quando existe fila de espera para o atendimento. Afinal, ele poderá pensar que perderá a vaga (que ele demorou tanto para conseguir) se ele reclamar de alguma coisa.

Outro exemplo de limitação de autonomia pode ocorrer em casos de pesquisas biomédicas realizadas em países subdesenvolvidos. As populações desses países (incluindo a do nosso), quando selecionadas para participar de pesquisas de novos fármacos, são consideradas vulneráveis (isto é, têm limitação de autonomia). Mas, apesar dessa limitação de autonomia, essas pessoas serão tratadas e incluídas em pesquisas. Como isso é possível?

A correta informação das pessoas é que possibilita o estabelecimento de uma relação terapêutica ou a realização de uma pesquisa.

A primeira etapa a ser seguida para minimizar essa limitação é reconhecer os indivíduos vulneráveis (que têm limitação de autonomia) e incorporá-los ao processo de tomada de decisão de maneira legítima. Assim, será possível estabelecer uma relação adequada com o paciente e maximizar sua satisfação com o tratamento.

Para permitir o respeito da autonomia das pessoas, o profissional deverá explicar qual será a proposta de tratamento. Mas atenção! Essa explicação não se esgota na primeira consulta! Em todas as consultas o profissional deverá renovar as informações sobre o tratamento. Além disso, é preciso ter certeza de que o paciente entendeu as informações que recebeu. Por isso, consideramos que a informação não se encerra com as explicações do profissional, mas com a compreensão, com a assimilação das informações pelos pacientes, desde que essas informações sejam retomadas ao longo do tratamento.

A esse processo de informação e compreensão e posterior comprometimento com o tratamento denominamos consentimento.

Entretanto, vamos imaginar a situação oposta: o exagero na expressão da autonomia de uma pessoa. Se entendermos que o respeito pela autonomia de uma pessoa é o princípio que deve ser considerado em primeiro lugar, cairemos em uma armadilha. Nem sempre o paciente tem condições de avaliar qual o melhor tratamento para ele (afinal ele é leigo, não tem o conhecimento técnico necessário para isso).

Imaginemos um paciente que tem uma doença que exige a prescrição de medicamentos. Poderá ocorrer de ele se recusar a tomar os remédios. Contudo, nesse caso, o profissional não pode alegar que "o paciente é adulto, sua autonomia deve ser respeitada e por isso ele faz o que ele quiser". Ao contrário, o profissional (por ter o conhecimento técnico que diz que aquele medicamento é necessário) deverá se esforçar ao máximo para explicar ao paciente a importância do medicamento, afinal o princípio da beneficência (e não o da autonomia) deve ser respeitado em primeiro lugar.

Em algumas situações, a liberdade (autonomia) de algumas pessoas não é respeitada para que se respeite o benefício de outras. Por exemplo, a proibição de fumar em ambientes fechados. Se pensarmos no respeito pela autonomia daqueles que desejam fumar, não seria ético proibir, mas se pensarmos no benefício (ou não malefício) daqueles que não desejam fumar, a proibição se justifica. Outro exemplo é a interdição de restaurantes ou clínicas pela vigilância sanitária quando estes não apresentam condições satisfatórias para atender o público. O fechamento desses locais fere a autonomia do dono da clínica ou do restaurante em benefício da sociedade que os frequenta.

Precisamos nos preparar (estudar e exercitar o que aprendemos) para nos comportarmos de maneira ética.

Justiça

O terceiro princípio a ser considerado é o princípio de justiça. Este se refere à igualdade de tratamento e à justa distribuição das verbas do Estado para a saúde, a pesquisa etc. Costumamos acrescentar outro conceito ao de justiça: o conceito de equidade que representa dar a cada pessoa o que lhe é devido segundo suas necessidades, ou seja, incorpora-se a ideia de que as pessoas são diferentes e que, portanto, também são diferentes as suas necessidades.

De acordo com o princípio da justiça, é preciso respeitar com imparcialidade o direito de cada um. Não seria ética uma decisão que levasse um dos personagens envolvidos (profissional ou paciente) a se prejudicar.

É também a partir desse princípio que se fundamenta a chamada objeção de consciência, que representa o direito de um profissional de se recusar a realizar um procedimento, aceito pelo paciente ou mesmo legalizado.

Todos esses princípios (insistimos que eles devem ser nossas "ferramentas" de trabalho) devem ser considerados na ordem em que foram apresentados, pois existe uma hierarquia entre eles. Isso significa que, diante de um processo de decisão, devemos primeiro nos lembrar do nosso fundamento (o reconhecimento do valor da pessoa); em seguida, devemos buscar fazer o bem para aquela pessoa (e evitar um mal!); depois devemos respeitar suas escolhas (autonomia); e, por fim, devemos ser justos.

Especialização em Saúde da Família
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