O cenário que temos é de duas famílias que residem em bolsão de miséria e que trabalham como catadoras de lixo para sobrevivência. São famílias que estão em situação de vulnerabilidade extrema. O trabalho no lixo tem íntima relação com exclusão social e agravos à saúde.
A avaliação da primeira família, composta por Antonio Carlos, Edileusa e o filho Gerson de 11 anos – que também ajuda no trabalho de catador de lixo –, aponta para questões intimamente implicadas: pobreza, doença, trabalho infantil e fracasso escolar. Em populações em situação de pobreza e exclusão social, as crianças compõem o grupo mais suscetível a todos os agravos.
Gerson é vítima do que podemos chamar de negligência social. Mesmo sabendo que a situação de negligência não é intencional por parte da família, e sim consequência da situação de extrema exclusão social da qual toda a família é vítima, a equipe de saúde deve estar preparada para atuar no sentido de proteção à criança, realizando encaminhamentos pertinentes.
Encaminhamentos estes no sentido de contribuir na vida de Gerson, minimizando as consequências danosas da pobreza no crescimento físico e intelectual do pré-adolescente. É fundamental que a equipe de saúde da UBS Ilha das Flores conheça toda a rede social do entorno do bairro, a fim de facilitar os encaminhamentos. Nessa situação, encaminhamentos para o Conselho Tutelar e para o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) devem ter o objetivo de facilitar a inclusão de Gerson e de sua família em programas sociais do município.
Famílias como a de Gerson podem se beneficiar com programas redistributivos de renda, como o Programa Bolsa-Família. Outra ação importante que poderia ser realizada nesse caso seria a inclusão de Gerson no Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, que visa garantir a assiduidade escolar mediante a distribuição de uma verba mensal para a família. Programas de distribuição de alimentos associados a Banco de Alimentos poderiam contribuir em melhorar a alimentação de Gerson, pois conforme história colhida pela Agente Comunitária Valéria, ele também se alimenta dos restos de comida do lixo, muito provavelmente porque sofre privação de uma alimentação adequada em casa.
Essa situação reflete o que denominamos de insegurança alimentar. Outra ação que pode beneficiar Gerson é sua inclusão em programas de lazer e esporte, complementares ao horário das aulas, pois certamente essas práticas trazem importantes benefícios na constituição física, intelectual e social para crianças em situações de risco.
Crianças que vivem em condições socioambientais muito desfavoráveis como a de Gerson podem apresentar agravos de saúde, como desnutrição, parasitose intestinal, anemia, enteropatia ambiental e hepatite. A enteropatia ambiental é uma síndrome que acomete crianças que residem em ambiente altamente contaminado, com ou sem manifestações clínicas. Crianças nessa situação, além de parasitas intestinais, contêm grande número de bactérias colônicas no intestino delgado.
Estudos também demonstram que essas crianças apresentam também maior quantidade de bactérias patogênicas resistentes a antibióticos e menor quantidade de bactérias protetoras nas fezes, mostrando profundas alterações na sua microbiota intestinal. Todas essas alterações no sistema digestivo podem acarretar prejuízos na função absortiva intestinal, podendo manifestar-se clinicamente com diarreia crônica e desnutrição. Essas alterações intestinais são completamente reversíveis com a mudança de ambiente, apontando a nítida relação entre contaminação ambiental e doença.
A hepatite viral do tipo A também acomete mais comumente crianças que vivem em condições sanitárias precárias, uma vez que o vírus da hepatite A é de transmissão fecal-oral e pode ser transmitido por meio de água, alimentos contaminados e objetos inanimados, e mantém partículas estáveis por dias e até meses em água potável, água do mar, solo e esgoto contaminados. A grande maioria das crianças apresenta quadro oligossintomático, sem icterícia, podendo ser confundido com um resfriado comum. Em comunidades com condição sanitária precária, a maioria das crianças imuniza-se naturalmente, por meio de infecções com quadro inaparente ou inespecífico, logo nos primeiros anos de vida. Além da hepatite viral A, Gerson, que é trabalhador infantil do lixão, também é vulnerável a contrair as hepatites virais B e C, mediante acidentes perfuro-cortantes com material contaminado, considerando os descartes de materiais biológicos em lixo comum, bem como a falta de acesso a equipamentos de biossegurança nessa comunidade.
Conforme relato da mãe Edileusa à Agente Comunitária Valéria, Gerson não está comendo direito e apresenta vômitos há dois dias, sem relato de diarreia ou outros sintomas. A Sra. Edileusa associa esse quadro ao fato de ele comer restos de comida do lixão, quando não está sob sua supervisão. Gerson apresenta um quadro de dispepsia aguda, que pode ser decorrente da ingestão de alimentos contaminados. Na vigência de um quadro agudo como o apresentado por Gerson, é fundamental uma avaliação médica, a fim de verificar o estado geral e o grau de hidratação, bem como sinais de patologias específicas, como a presença ou não de icterícia e outros sinais clínicos que podem ser sugestivos de hepatites, que podem aparecer alguns dias após o início do quadro de vômitos, portanto a evolução do quadro pela equipe da Estratégia Saúde da Família (ESF) também é pertinente, considerando que os catadores de lixo estão também incluídos como grupo de risco para hepatites virais B e C.
A avaliação da carteira de vacinação de Gerson é essencial, a fim de averiguar a situação vacinal e especialmente no tocante à imunização completa para hepatite B, uma vez que desde 1991 a vacina contra hepatite B faz parte do calendário vacinal nacional, sendo as três doses aplicadas no primeiro ano de vida.
A avaliação da condição nutricional mediante realização de antropometria (peso e estatura) e a realização de hemograma e de protoparasitológico de fezes devem fazer parte da rotina de acompanhamento da equipe da ESF no caso de Gerson.
Na consulta de Josélia, da segunda família, a mesma traz o seu marido. Doutor Marcelo aproveita para discutir as possibilidades de doenças associadas a acidentes com materiais perfuro-cortantes contaminados, questiona sobre imunização para hepatite B, salienta a importância da realização de exames para HIV e hepatites B e C, orientações sobre medidas de controle, como o uso de preservativos, bem como explica o fluxo de encaminhamento de exames para serviços de maior complexidade. A abordagem que Marcelo realiza sobre as hepatites B e C e HIV está de acordo com as recomendações do Programa Nacional para Prevenção e Controle das Hepatites Virais – Manual de Aconselhamento em Hepatites Virais de 2005, do Ministério da Saúde. Segundo esse manual, a recomendação é que, durante a avaliação de risco, as medidas preventivas devem ser elaboradas conjuntamente e os componentes de orientação/informação e apoio emocional devem estar presentes.
No momento da avaliação de risco, é importante reforçar as orientações e enfatizar informações sobre as formas de transmissão das hepatites, medidas de controle, levando em conta os riscos do usuário. Explicitar o fluxo de referência e contrarreferência, caso seja necessário. O encaminhamento para serviço de maior complexidade para a realização de testes sorológicos ou biologia molecular está entre um dos pontos que devem ser lembrados, tendo sido realizado por Marcelo.
Outro ponto que deve ser discutido na abordagem de pacientes de risco para hepatites B e C é a identificação de barreiras para a mudança das situações de risco e contribuir para a elaboração de um plano viável de redução de riscos. Esse aspecto não foi abordado na consulta de Marcelo, entretanto, na reunião do grupo de catadores, poderia ser discutida a problematização da necessidade de medidas protetivas contra acidentes perfuro-cortantes na catação de lixo (equipamentos de biossegurança).
A equipe de saúde deve também aproveitar as reuniões do grupo de catadores para debater questões sociais pertinentes, contribuindo para a cidadania e ampliando possibilidades, mediante interfaces com outros segmentos e secretarias do município, como a Secretaria de Promoção Social e a Secretaria de Desenvolvimento, Trabalho e Inclusão.