Maria do Socorro
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Felipe Favorette Campanharo




Gestação e HIV

O caso começa de forma marcante, relatando, na terceira cena, o modo como Maria teria sido infectada: "Era casada com José, portador do HIV, cuja transmissão a ela nefastamente ocorreu num tempo em que ela não acreditava que o companheiro pudesse ter outros relacionamentos e ser usuário de drogas."

No Brasil, a principal forma de transmissão do HIV é a heterossexual, e a doença acomete atualmente dois homens para cada mulher. No início da epidemia eram 16 homens para cada mulher, e isso reflete o crescimento da doença entre as mulheres. Oitenta por cento das pessoas infectadas pelo HIV no Brasil encontram-se na faixa etária reprodutiva, sendo a gravidez – planejada ou não – uma ocorrência comum.



Importante é diferenciar o soropositivo (aquele que tem sorologia +, mas não apresenta nenhum sintoma e tem sua imunidade preservada) da pessoa com AIDS (sinais e sintomas + ou acometimento da imunidade). O fato de fazerem acompanhamento e nunca terem precisado usar antirretrovirais mostra que são soropositivos, e não doentes. É importante questionar sobre sinais e sintomas da doença, que podem ser sinais inespecíficos, como febre, perda de peso, diarreia... O acompanhamento desses indivíduos deve ser em serviço de referência, com equipe multiprofissional treinada para atender às diversas necessidades – não só de saúde, mas também sociais. Importante também seria o acesso às informações contidas no prontuário da cidade de origem, o que confirmaria seu acompanhamento prévio e traria sem dúvida informações valiosas sobre seu diagnóstico, estado de saúde e situação imunológica.


O HIV tornou-se uma afecção crônica nos dias atuais, com a evolução da terapia antirretroviral altamente efetiva, em que os infectados não estão mais fadados a morrer de AIDS. Todo portador do vírus da AIDS tem direito à assistência e ao tratamento, dados sem qualquer restrição, garantindo melhor qualidade de vida. Vivemos uma fase em que os indivíduos devem "conviver" com o HIV, mantendo em todos os aspectos sua vida social. Toda ação que visar recusar aos portadores do HIV/AIDS um emprego, uma assistência ou a privá-los disso, ou que tenda a restringi-los à participação em atividades coletivas, deve ser considerada discriminatória e punida por lei.


O casal em questão é dito "soroconcordante" (ambos são HIV+). Entre os direitos garantidos na Constituição estão os direitos sexuais e reprodutivos, sendo ainda o planejamento familiar de livre decisão do casal. Chamamos atenção ao fato de a gravidez em questão não ter sido planejada e ter acontecido devido à falha do método contraceptivo em uso (camisinha). Essa gestação poderia ter sido evitada, caso a paciente fosse orientada quanto ao uso da contracepção de emergência (pílula do dia seguinte). É importante o uso da camisinha, mesmo em parceiros soroconcordantes, pois o método de barreira evita a troca de "cepas" virais diferentes, o que exporia os pacientes a um risco "extra".


A gravidez em pacientes HIV+ deve acontecer com o máximo de segurança, em condições ideais, tanto para os pais quanto para o bebê. As tecnologias hoje disponíveis e recomendadas no Brasil (uso de TARV na gravidez, AZT intraparto e realização de cesárea eletiva) são capazes de reduzir o risco de transmissão vertical para menos de 1%.

Para aqueles casais sorodiscordantes que desejam ter filhos, é importante o acompanhamento em serviço de referência. Os métodos de reprodução assistida podem ir desde terapias consideradas simples até os mais complexos processos.

Conheça os pré-requisitos para o sucesso na reprodução em casais HIV+:


Todas gestantes de alto risco encaminhadas ao serviço de referência deverão ser monitoradas por este. Sugere-se que mantenham o vínculo com o serviço de contrarreferência, realizando agendamento de retorno ao serviço de saúde para confirmação do seu acompanhamento (no pré-natal de alto risco) e/ou a manutenção da sua participação em grupo educativo de gestantes.

A rotina pré-natal nas pacientes HIV devem incluir na primeira consulta, além dos exames rotina, a quantificação CD4 e da carga viral, avaliação do perfil lipídico (colesterol e triglicérides) e função renal (ureia e creatinina séricas). Hemograma e enzimas hepáticas deverão ser solicitados com intervalo de 15 a 60 dias, de acordo com o esquema de TARV em uso, além de Reação de Mantoux (PPD) para avaliação de contato com tuberculose, bacterioscopia de secreção vaginal e pesquisa de clamídia e gonococo em secreção cervical.

A coleta de citologia oncótica do colo do útero (Papanicolaou) deve seguir as diretrizes do Programa de Prevenção do Câncer Cérvico-Uterino. A periodicidade recomendada é a realização de um exame citopatológico a cada três anos, após a realização de dois exames anuais consecutivos com resultados negativos, ou seja, exames que não apresentaram alterações neoplásicas malignas. Havendo alguma anormalidade, a conduta deverá ser individualizada segundo as recomendações do Programa de Prevenção do Câncer Cérvico-Uterino.

A ecografia obstétrica, neste caso em especial, é de grande valia, pois a idade é um fator limitante na vida reprodutiva da mulher, sendo fundamental reconhecer que existe maior risco para aneuploidias, tais como Trissomias 13, 18 e 21 nas pacientes com idade superior a 35 anos. Isso aumenta a importância da realização do US morfológico de primeiro trimestre, que deverá ser realizado entre 11-14 semanas como rastreamento.

A maior prevalência de comorbidades clínicas e obstétricas no ciclo grávido-puerperal da gestante acima de 40 anos impõe assistência pré-natal atenciosa, sendo a consulta pré-natal muitas vezes a primeira consulta realizada por essas mulheres em longo período de tempo.


Paciente assintomática do ponto de vista do HIV, Maria do Socorro tem início da TARV programado para a 14ª semana. Logo, nessa idade gestacional, ela já deveria estar com os medicamentos em mãos.

O cartão da gestante deverá ser preenchido com as informações básicas para atendimento da paciente, dados sobre seu estado de saúde, como nível de hemoglobina, sorologias e idade gestacional (corrigida caso haja alguns erro de data). Esse cartão deverá ser levado obrigatoriamente a todas as consultas, sendo muitas vezes o único documento/registro que a paciente leva no momento do parto.


A adesão à profilaxia antirretroviral é um dos principais fatores na redução do risco de transmissão da infecção pelo HIV. O uso inadequado e/ou incompleto da TARV está diretamente relacionado ao risco de falha da profilaxia. A paciente deverá entender e aceitar a necessidade da profilaxia e utilizar os medicamentos prescritos com responsabilidade compartilhada. Muitos fatores influenciam na adesão da paciente, entre eles a escolaridade, aspectos socioeconômicos, efeitos colaterais e situação do vínculo com a equipe profissional responsável.

A fim de melhorar a adesão, devemos lançar mão de estratégias, como utilizar lembretes para tomada dos medicamentos, elaborar escala diária dos medicamentos, definindo horários ou atividades relacionadas com as tomadas, manter a paciente bem informada e esclarecer suas dúvidas em todas as consultas.

A paciente em questão infelizmente não apresentou reação positiva em relação à gravidez, e talvez por medo/preconceito negou-se a admitir o HIV (rasura no cartão), sendo, porém, o aspecto mais importante o não uso da profilaxia. Isso deixa o feto em situação desfavorável, exposto à contaminação. Conforme dito anteriormente, a responsabilidade pelo uso da TARV deve ser compartilhada com a paciente, e seu não uso constitui negligência materna.

A tentativa de reforçar o vínculo e a realização de visitas domiciliares são opções louváveis a serem desenvolvidas pela equipe no sentido de busca ativa desse caso, cujo acompanhamento poderia impedir fim tão dramático como a transmissão vertical do HIV.

Especialização em Saúde da Família
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