No presente caso, há o relato da existência de violência intrafamiliar perpetrada pelos pais aos seus filhos, de acordo com o atendimento realizado pela assistente social do NASF e com o conhecimento que se tem da retirada de duas crianças do seio da família pelo Conselho Tutelar e, possivelmente, pela Vara da Infância e Juventude.
Não há elementos da anamnese e do exame físico que nos permitam identificar se as crianças que ainda vivem com a família estejam sofrendo maus-tratos e muito menos a qual tipo de violência intrafamilar estão submetidas: negligência/abandono, violência psicológica, violência física ou violência sexual. Tal informação também é inexistente em relação às crianças que estão afastadas da família.
Porém, o caso nos faz pensar que estamos lidando com uma família que vive uma situação de risco psicossocial associado à violência doméstica, evidenciada por condições de vulnerabilidade, como o uso de drogas, dificuldades socioeconômicas, provável ausência do pai em seu papel provedor, dificuldades dos pais em cuidar de sua própria saúde e do próprio corpo, tornando-a bastante vulnerável para o desenvolvimento de um estilo negligente no cuidado dos seus filhos, em que os pais concentram-se em suas próprias necessidades e interesses, e não nas dos filhos. Os pais não se envolvem com os seus papéis, e o papel parental, a longo prazo, tende a diminuir cada vez mais, até desaparecer. Desenvolvem uma tendência a manter seus filhos a distância, respondendo somente às suas necessidades básicas, não se envolvendo nas tarefas de socialização e não monitorando o seu comportamento.
E o fato de a família se mudar do território, quando sentiu que os profissionais se aproximavam mais no intuito de compreender a sua dinâmica de relações, ressalta uma característica marcante de famílias abusadoras, que é a dificuldade e a resistência em se socializar, levando a um empobrecimento nas trocas afetivas.
Embora o Conselho Tutelar fosse sabedor da situação do risco psicossocial desta família para ocorrência de violência doméstica contra as crianças, a equipe de Saúde da Família não detinha essa informação, que fora repassada de forma incipiente pela equipe do NASF. Notamos, nesse caso, a ausência de articulação de uma rede de apoio social que pudesse favorecer o enfrentamento da violência doméstica. A rede de apoio envolve todos os recursos disponíveis do indivíduo e do seu meio social, incluindo, portanto, a família, a escola, a Unidade Básica de Saúde e outras instituições com as quais a criança tem contato, na procura de ações que envolvam o suporte direto de pessoas (professores, profissionais de saúde, vizinhos, agentes comunitários de saúde) e de ações de suporte institucional mediado por políticas públicas (vagas em escolas de educação infantil ou ensino fundamental, procura dos Centros de Referência de Assistência Social para inclusão da família em programas governamentais como Bolsa Família, por exemplo, e acompanhamento sistemático pelo serviço de saúde).
Em nosso meio, o Conselho Tutelar caracteriza-se como um órgão da rede de apoio institucional às crianças e famílias em risco psicossocial. Ele deve funcionar como o grande articulador dessa rede de apoio, cujas decisões e articulações estabelecidas podem influenciar a resposta à situação de vulnerabilidade de crianças e famílias e o desenvolvimento infantil.
O Conselho Tutelar trabalha a partir de uma denúncia oferecida por familiares, profissionais ou por qualquer cidadão que queira ou não se identificar. Quando a denúncia de violência doméstica é apresentada, o Conselho tem poderes para aplicar uma série de medidas que busquem garantir a proteção da criança, que vão desde a orientação, o apoio e o acompanhamento temporário da família, realizadas pelo próprio conselheiro, até a suspensão do pátrio poder. Essas ações são trabalhadas em articulação com a Vara da Infância e Juventude e o Ministério Público.
No nosso caso também não há o relato de quem partiu a denúncia de violência doméstica, que resultou na suspensão do pátrio poder pelo Conselho Tutelar. Este não exerce de forma contundente o seu papel de disparador das redes de proteção e de apoio, tendo em vista que a própria equipe da Estratégia Saúde da Família, elo fundamental desta rede, não tinha conhecimento do fato, sendo impedida, portanto, de ter resultados em ações concretas para o enfrentamento da violência dentro desta família.