A paciente Maria do Socorro, de 42 anos, chega à Unidade de Saúde com gestação inicial e desejo de interromper a gravidez.
O abortamento é definido como a interrupção da gravidez antes da 20ª semana, sendo considerado precoce quando ocorre antes da 12ª.
Em relação à sua motivação, os abortamentos são classificados em espontâneo e provocados. Os abortamentos espontâneos são responsáveis por 55% dos casos e acredita-se que 45% dos abortamentos sejam provocados. É a mais frequente intercorrência obstétrica, acometendo até 20% das gestações. Na maioria das vezes, é evento isolado e sem causa aparente, decorrente de alterações cromossômicas fetais. Apesar disso, costuma ser frustrante, acarretando sentimentos de pesar e luto na mulher.
O abortamento provocado é proibido pela legislação brasileira, não sendo passível de punição em apenas duas situações, de acordo com o artigo 128 do Código Penal Brasileiro:
No primeiro caso, é dispensável o consentimento da gestante. Somente o médico pode avaliar essa necessidade. A intervenção independe de autorização judicial ou policial. No entanto, deve ser caracterizado o "estado de necessidade", sendo ideais a anuência de dois médicos e a notificação ao Comitê de Ética da instituição.
No caso de aborto por violência sexual, o procedimento só é permitido com o prévio consentimento da gestante ou de seu representante legal. O Código Penal não exige qualquer documento para a prática do aborto, a não ser o consentimento da mulher. A paciente não tem o dever legal de notificar o fato à polícia. No entanto, o médico deve valer-se dos elementos a respeito do estupro, quais sejam: declaração da mulher, anamnese e exame físico documentados em prontuário, atestados, laudo do IML (se houver), laudo ultrassonográfico, entre outros. Apesar de o Boletim de Ocorrência não ser obrigatório, a mulher deve ser estimulada a tomar as providências judiciais e policiais cabíveis, e o registro do Boletim de Ocorrência seria ideal. Se o médico for induzido ao erro pela gestante ou por terceiros quanto à ocorrência de violência sexual, ele não responderá pelo crime (art. 20, parágrafo 1º do Código Penal).
Uma terceira situação que tem sido muito discutida e aguarda decisão do supremo tribunal de justiça do Brasil é nos casos de anencefalia e outras mal-formações incompatíveis com a vida, visando salvaguardar a gestantes dos riscos inerentes à evolução destas gestações, que costumam evoluir com complicações (polihidâminio, pré-eclampsia, hemorragias pós partos etc.).
Maria do Socorro não se enquadra em nenhuma das situações descritas acima, portanto não poderia ser submetida a um abortamento legal no Brasil. A infecção pelo HIV não constitui risco à mãe ou ao feto, uma vez que hoje existem alternativas seguras de tratamento e profilaxia da transmissão vertical.
Diante disso, é frequente que a paciente procure clínicas e serviços clandestinos para a prática do aborto, que é muitas vezes realizado em condições ruins e com material inadequado.
O abortamento provocado é importante causa de infecção. Quando isso ocorre, a paciente apresenta dor local importante, útero amolecido, eliminação de material com odor fétido, comprometimento de estado geral, febre e taquicardia. Casos mais graves podem evoluir para infecção generalizada e septicemia. O tratamento antibiótico imediato é fundamental, lembrando que nas situações em que não há melhora clínica, a histerectomia pode ser necessária. Além disso, o aborto infectado ainda é causa de morte materna em nosso país.
Também é frequente que nos casos de abortamento provocado o material não seja enviado para estudo anátomo-patológico, indispensável para o diagnóstico diferencial de doença trofoblástica gestacional ou até mesmo de gestação ectópica. Por outro lado, é infrequente a realização de exames prévios ao procedimento, que poderiam levar à suspeita dos diagnósticos diferenciais. O erro diagnóstico nessas situações pode acarretar consequências sérias para a mulher, como a evolução para rotura tubária e choque hemorrágico, ou a evolução para doença trofoblástica maligna.
A não administração de imunoglobulina Rh para mulheres Rh negativo ainda pode ser outra causa de morbidade no aborto provocado, levando a aloimunização e risco de complicações fetais graves caso haja gestações subsequentes.
O médico Marcelo orientou adequadamente Maria do Socorro quantos aos riscos de se submeter a um procedimento ilegal, procurando, ao mesmo tempo, entender os medos e as angústias da paciente. Nota-se que, na consulta subsequente, Maria do Socorro desistiu do aborto e optou por levar a gestação adiante. Nessas situações de conflito, é importante que o profissional de saúde acolha a mulher, alertando-a sobre os riscos do procedimento, tentando, porém, não julgar a paciente. A abordagem inicial pode ser fundamental na tomada de decisão.
Classificamos os abortamentos em relação à idade gestacional, podendo ser precoces quando acontecem antes de 12 semanas e tardio entre 13 e 22 semanas. Alguns classificam também os abortamentos precoces em ovulares (até oito semanas) e embrionários (entre 9 e 12 semanas). Os abortamentos tardios também são denominados abortamentos fetais.
Aspectos emocionais e doenças maternas graves como HIV devem ser avaliados com muito cuidado. Embora saibamos que com o pré-natal adequado, bem acompanhado e com as profilaxias anti retrovirais oportunas, o risco de transmissão vertical (mãe-feto) tenha diminuído drasticamente, não podemos deixar de admitir o impacto que esta doença traz aos pacientes, principalmente nas mulheres grávidas, com medo da passagem da sua doença para seu filho.
Embora no caso em questão o médico tenha tido um comportamento adequado no seu atendimento, não houve espaço maior para refletir sobre o contexto de vida da paciente numa visão ampliada e sistêmica. Como estava a relação intra familiar desta mulher? Como era o seu comportamento dentro de casa com seu esposo e filhos? Como ela enfrentava o estigma de ter uma doença grave materna, sabendo que poderia morrer? E quem cuidaria de seus filhos? Será que ela ainda estava com seu marido depois de tudo o que aconteceu? Será que foi discutido o fato de ela ter alterado o resultado na carteira de pré-natal por vergonha de ser estigmatizada pelo HIV, como costuma acontecer em nosso país? Todas essas questões seriam pertinentes em um atendimento multiprofissional, a fim de minimizar esses conflitos e muitos outros que com certeza existiam para esta mulher.
Com essa visão mais ampla, podemos perceber a necessidade de uma equipe multiprofissional e integrativa para abordar essas pacientes e temos que discutir mais sobre a sociopatia como um importante problema de saúde pública, inclusive como fator coadjuvante nas decisões das mulheres em levarem adiante essas gestações que impõem mais risco a elas.
Outro aspecto que deve ser enfatizado é que essas mulheres, em virtude dos seus conflitos, medos e inseguranças, tendem a colocar-se em situações de alto risco para a realização do aborto. Com isso tornam-se suicidas em potencial, recorrendo a procedimentos totalmente inseguros para a interrupção da gestação, que vão desde a procura de locais inadequados (clínicas de fundo de quintal) até a utilização de medicamentos de forma errada ou introdução de materiais inadequados no útero, como agulhas de tricô, galhos de roseira e sondas vesicais reutilizadas por "parteiras", que rompem a membrana amniótica. Essas pacientes são encaminhadas para os hospitais apenas quando começam a sangrar e ter cólicas, ficando muitas vezes por dias com a sonda introduzida no útero, levando a infecções graves, com consequências desastrosas.
O fato de Maria do Socorro ser tabagista, nos deve lembrar os efeitos do fumo sobre a gestação, principalmente relativo às implicações sobre o feto,determinando restrição de crescimento fetal. No entanto, vale ressaltar que a gestação não desejada pela paciente, não se configura um estímulo para que a mesma deixe de fumar, principalmente também pelo seu estado emocional em que o fumo seria uma "válvula de escape" para seu enfrentamento deste estado de ansiedade intensa que a mesma enfrenta.
As políticas governamentais relacionadas ao abortos também devem ser lembradas. A Humanização no Atendimento da Mulher em Situação de Abortamento, é um programa que teve início nos anos de 2009 e 2010, capitaneado pelo Ministério da Saúde, em que a meta foi diminuir a criminalização da mulher que provocou o abortamento, oferecer novas possibilidades e orientações na prevenção de novas gestações indesejadas e melhoria da técnica de esvaziamento uterino através da aspiração uterina em lugar da curetagem que apresenta maior morbidade. É importante para todos os profissionais de saúde terem conhecimento destes programas para os devidos encaminhamentos e orientações à população.
Portanto, muitas são as vertentes que poderiam ser analisadas neste caso, sendo que sabemos das dificuldades do sistema de saúde em oferecer todas as necessidades em questão, mas isso não impede a equipe de entender todas as implicações possíveis e procurar abordar o máximo de vertentes relativas aos aspectos expostos.
Pré-natal
No caso de Maria do Socorro, o pré-natal deve ser realizado em serviço especializado de referência, com abordagem multiprofissional, mas a Equipe de Saúde da Família deve se responsabilizar e coordenar a atenção junto à rede de serviços, observando a realização das orientações prescritas pelo serviço de referência, dando apoio emocional e suporte social e procurando suprir as necessidades da gestante nas diferentes dimensões (biopsicosocial), pois a equipe está mais próxima de sua residência e, portanto, mais próxima da problemática que envolve a gestante.
É importante ressaltar que, na primeira consulta da gestante, são previstos acolhimento, obtenção de história clínica, realização de exame físico, solicitação de exames de acordo com o protocolo vigente no município, verificação da situação vacinal, realização de cálculo da idade gestacional, avaliação nutricional, verificação da necessidade de encaminhar a gestante para referência especializada, prescrever ácido fólico, fornecer as orientações necessárias, registrar a gestante no SisPreNatal, abrir ficha B para a gestante, convidar a gestante para o grupo de pré-natal (que de preferência deve ser realizado em conjunto com a equipe de saúde bucal) e agendar o retorno.
O documento do Ministério da Saúde (BRASIL, 2005) oferece informações detalhadas de todos esses procedimentos, inclusive dos tópicos a serem abordados durante as atividades educativas (grupos) com a gestante. A equipe de saúde bucal também tem muitas orientações para compartilhar com a gestante nas atividades educativas nos diferentes trimestres da gestação (SÃO PAULO, 2007) e pode aproveitar esse contato para realizar a avaliação da saúde bucal, ou agendá-la para uma data oportuna. Também é preciso lembrar que, a partir da constatação da gravidez, a família passa a integrar o grupo de prioridades da equipe, devendo ser realizados o devido registro no SIAB e o acompanhamento pela ficha B.
Em relação ao cartão de pré-natal, é muito importante seu preenchimento correto, pois este permite que a gestante tenha sempre em mãos as informações mais importantes referentes à sua saúde, possibilitando que seja atendida da melhor forma nos diferentes serviços, principalmente em casos de urgência. Dessa forma, é aconselhável alertar Maria do Socorro sobre a presença de rasuras, pois pode colocar em risco sua saúde e a do bebê.
Referências
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas. Área Técnica de Saúde da Mulher. Pré-natal e puerpério: atenção qualificada e humanizada: manual técnico. Brasília: Ministério da Saúde, 2005. (Série A. Normas e Manuais Técnicos; Série Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos Caderno n. 5).
SÃO PAULO (cidade). Secretaria Municipal de Saúde. Coordenação de Desenvolvimento de Programas e Políticas de Saúde CODEPPS. Área Técnica de Saúde Bucal. Nascendo e crescendo com saúde bucal: atenção à saúde bucal da gestante e da criança (Projeto Cárie Zero). São Paulo: Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, 2007.