Maria do Socorro, ao ser chamada, aproximou-se com tranquilidade do consultório médico, no ambulatório de atenção primária. A mulher de 42 anos, esbelta, cabelos negros até os ombros, parda, por herança genética e, da mesma forma, por trabalhar em sol ardente em cidade de origem, era do interior paulista. Aparentava um pouco mais envelhecida em relação à sua idade e mantinha, apesar de aparente história sofrida, olhar firme, olhos grandes e atentos, rosto redondo, de aperto de mão forte e sorriso gentil. Paradoxalmente, porém, como será visto a seguir, parecia angustiada em resolver o problema que a trouxera ali, já que a solução desse problema ocorreria de uma forma que é proibida em nosso país.
Com seis filhos, era casada com um homem portador do HIV, cuja transmissão a ela, nefastamente, ocorreu num tempo em que ela não acreditava, ou não queria acreditar, que o companheiro pudesse ter outros relacionamentos. Encontrava-se agora, novamente, em atraso menstrual e com uma contagem do hormônio beta-HCG suficiente para que pensasse num procedimento que a aliviava e, ao mesmo tempo, a preocupava: o aborto(link).
Atualmente, com a família recém-chegada ao lugar, fazia serviços gerais em casas da vizinhança. Ela e o marido não completaram o primeiro grau, embora ela aparentasse ter tido mais alguns anos de estudo. Puderam alugar pequena e humilde casa, com dois quartos. Alguns filhos dormiam no mesmo quarto do casal. Casualmente, eram os que tinham sintomas sugestivos de asma persistente leve. Maria do Socorro dizia que eles faziam regularmente acompanhamento do HIV na cidade de origem, e que nunca precisaram usar antirretrovirais.
Aparentava boa reação emocional(link) ao HIV, reagindo(link) e enfrentando psicologicamente(link) bem o problema. Alegava cuidarem-se com preservativos, mas o rompimento de um deles anunciou a possibilidade do que mais temia. Passou, então, a fumar ainda mais do que já fumava: de 10 a 15 cigarros ao dia, passou a fumar de 20 a 30. Em certos momentos, percebia-se fumando, mas nem sabia como havia acendido o cigarro. Vez por outra, dois cigarros encontravam-se acesos ao mesmo tempo, o que a entristecia momentaneamente. Havia aprendido a fumar quando acendia cigarros a pedido do pai, com o qual era muito ligada e, embora soubesse que prejudicava a asma de dois de seus filhos, não conseguia largar o tabagismo(link).
Dr. Marcelo: ― O que te faz pensar em abortar?
Maria: ― Não quero mais filhos, Doutor...
Dr. Marcelo: ― Sim.... (expressão de acolhimento, serenidade).
Maria: ― O José, meu companheiro, não aceitou fazer vasectomia nem que eu fizesse ligadura. Disse que "era contra Deus"... Pelo menos, aceitou usar camisinha...
Dr. Marcelo: ― (gesto com a cabeça, simbolizando "compreendo").
Maria: ― E ainda tenho esse vírus... (olhos se umedecem discretamente).
Dr. Marcelo: ― (médico imóvel inicialmente, depois de alguns segundos, como a paciente continua a chorar, coloca gentilmente a mão no antebraço de Maria). ― Quer um lenço de papel?
Maria: ― Não, obrigada. Mal conseguimos comida para os que estão aí...
Dr. Marcelo: ― Posso tentar imaginar o quanto deve ser difícil para você pensar nas consequências de uma nova gestação (retira a mão do antebraço).
Maria: ― É muito difícil, sim...
Dr. Marcelo: ― Se você fosse fazer o aborto, como você faria?
Maria: ―Uma de minhas patroas falou que tem clínicas... Algumas mais baratas...
Dr. Marcelo: ― Você se informou de como fazem o procedimento?
Maria: ―Não. Não sei. Ouvi falar de umas que fazem com agulha de tricô mesmo.
Dr. Marcelo: ― O aborto é um procedimento médico, feito em vários países, mas é proibido no nosso. As clínicas que fazem são clandestinas, e muitas não o fazem corretamente, isto é, sem a limpeza adequada dos instrumentos e a técnica correta. Pode haver um grande risco para a saúde da mulher que se submete a um aborto, entre eles, sangramentos e infecções graves.
Maria: ― E o que poderia acontecer?
Dr. Marcelo: ― Poderia ficar muito doente, e sua vida ficar ameaçada.
Maria: ― Humm... (chora, silêncio).
Dr. Marcelo: ― E, se por acaso você resolvesse levar adiante a gestação, como seria?
Maria: ― Não sei, Doutor.
Dr. Marcelo: ― Quanto ao vírus, usando os remédios, diminuiria muito a chance de transmissão para o feto.
Maria: ― Agora também me apareceu uma bolinha no céu da boca... Os meus dentes, desde que peguei a doença começaram a amolecer e vejo uma "massa branca" na minha língua.
Dr. Marcelo: ― Que tal você marcar consulta com a dentista que tem aqui na UBS? Ela é super legal e tem um horário especial para grávidas.
Maria: - Acho que vou sim, pois minha boca está me incomodando.
Foi mantida uma média de 65% das gestantes alcançando seis consultas no pré-natal e preenchendo todas as condições para o recebimento dos incentivos do Ministério da Saúde.
Pela data da última menstruação, Maria do Socorro estaria com, aproximadamente, 10 semanas de gestação naquele momento. Tinha três doses da vacina antitetânica, com reforço há menos de cinco anos. Foram solicitados os exames de pré-natal, isto é, de laboratório, pertinentes ao 1.º trimestre de gestação, solicitada ecografia obstétrica e avaliação em pré-natal(link) de alto risco. Foi receitado ácido fólico para prevenção de defeitos de formação em tubo neural e coletado citopatológico de colo uterino. Maria do Socorro saiu satisfeita, combinando de retornar após 30 dias, além de passar com a Leda, dentista do posto.
Nesse retorno, com 13 semanas e 5 dias de idade gestacional, referia que pensou melhor e estava aceitando mais a gestação. Não tinha chegado a tentar o aborto. Contou ter consultado no pré-natal de alto risco e iria manter seu acompanhamento lá, mas que hoje se esquecera de trazer a carteira da gestante. Dissera que fora prescrita a profilaxia antirretroviral(link), que, segundo ela, iniciaria assim que tivesse os comprimidos em mãos. Foi orientada a respeito da importância de usar a medicação corretamente, para evitar transmissão vertical, mantendo sempre a forte impressão de compreender as orientações e estar muito disposta e motivada para o tratamento.
Passou com o dentista que verificou uma lesão, vegetante em palato duro, pediculada, de cor semelhante à mucosa, medindo aproximadamente 5 mm. A língua apresentava uma pseudomembrana esbranqueçada. Radiografou alguns dentes e observou perda horizontal do osso alveolar.
Na interconsulta com a enfermeira, esta solicitou discussão e reavaliação do caso após notar rasura no cartão da gestante, onde estaria o resultado do exame HIV, alterado grosseiramente para "não reagente". Maria do Socorro também não sabia contar como eram os nomes dos remédios ou quantos comprimidos diários usava. Havia apenas um registro de consulta no pré-natal de alto risco. A enfermeira optou por retornar ao consultório e abordar novamente a paciente, sem pressioná-la "pejorativamente", tentando preservar o vínculo. No entanto, Maria assumira a postura de "se colocar acuada", "defensivo-agressivamente", substituindo a aparente postura de "enfrentamento saudável"(link) da doença. Negava suas contradições quanto à medicação, não sabendo explicar a rasura, acusando a equipe de estar sendo injusta para com ela. Tentou-se reconhecer suas impressões, validando-as, para reforçar o vínculo, e marcou-se retorno. Ela não compareceu.
A equipe tentou, então, visita domiciliar. Antes disso, a informação de que havia sido retirada a guarda, pelo Conselho Tutelar, de dois filhos de Maria do Socorro, por supostos maus-tratos, veio à tona em virtude do trabalho do agente de saúde. Ao aproximar-se da casa da paciente, avistou, ao longe, Maria se esconder da equipe. Um familiar, que se apresentou como "primo", recebeu a equipe e disse, rispidamente, que Maria do Socorro nunca morara ali. A partir disso, a paciente nunca mais foi ao posto de saúde ou permitiu aproximação. O sentimento de frustração foi percebido por toda a equipe. A participação do caso ao conselho tutelar foi feita logo em seguida. A família mudou-se novamente, não sendo mais vista na região.