No passado, usuários que procurassem os postos de saúde para atendimento eventual por ferimentos ou por doença aguda, mesmo sem gravidade, com certa frequência eram encaminhados para hospitais sem passar pelo médico.
Essa conduta era muitas vezes tomada na recepção da Unidade pela dificuldade de "encaixar" atendimentos não programados na agenda do médico, já lotada por consultas do cronograma dos programas de saúde. Outros fatores que contribuíam para essa postura eram o entendimento de que o papel do posto de saúde era a "medicina preventiva" e o do hospital, a "medicina curativa". A insegurança do médico clínico de como proceder em certos casos de urgência e a falta de estrutura física e de material para atendimento de ferimentos também colaboravam para essa prática.
No caso do ferimento de Jéferson, o motivo de encaminhamento direto ao hospital "por não ser caso a ser atendido no ESF" mostra que ainda persiste o conceito antigo de prevenção em senso estrito. A equipe muitas vezes desconhece as razões estratégicas que fundamentaram a criação da Estratégia Saúde da Família.
Dentro da concepção de reestruturação do modelo assistencial atualmente preconizado com a implementação da Saúde da Família, é fundamental que a Atenção Primária e a ESF se responsabilizem pelo acolhimento das famílias adstritas ou dos moradores do seu território de cobertura quando necessitarem de assistência por situações cuja complexidade seja compatível com esse nível de assistência.
É de conhecimento geral que os aparelhos formadores oferecem insuficiente formação para o enfrentamento das urgências. Assim, é comum que profissionais de saúde, ao depararem com uma urgência de maior gravidade, tenham o impulso de encaminhá-la rapidamente para a Unidade de maior complexidade, sem nem sequer fazer uma avaliação prévia e a necessária estabilização do quadro, por insegurança e desconhecimento de como proceder. Assim, é essencial que esses profissionais estejam qualificados para esse tipo de enfrentamento, se o intuito é imprimir efetividade na sua atuação.
As Unidades devem ter pessoal treinado e espaço devidamente abastecido com medicamentos e materiais essenciais ao primeiro atendimento de urgências mais frequentes na comunidade até a viabilização de transferência para a Unidade de maior complexidade.
Portanto, o caso do ferimento de Jéferson é de competência da Saúde da Família, que deveria tê-lo atendido, avaliado e aplicado medidas iniciais de tratamento antes do encaminhamento ao hospital ou pronto-socorro.
O tempo decorrido desde o acidente até o início do tratamento, além de outras características da lesão, define a conduta a ser tomada. Se a lesão tiver ocorrido há mais de seis horas, a sutura pode ser inviável. No caso de Jéferson, além do tempo gasto para chegar à Unidade de Saúde da Família, há que se considerar a demora a ser somada para início do tratamento no hospital.
Cuidar de ferimentos abertos não é uma atividade exclusiva de hospital ou pronto-socorro. A equipe do PSF pode assumir a responsabilidade do tratamento de pequenos ferimentos aplicando os cuidados básicos, incluindo até a sutura, se o médico tiver treinamento mínimo e a Unidade tiver sala adequada e material.
Mesmo que a Unidade não tenha condições de solucionar casos de ferimentos, a avaliação da lesão deve ser feita e o tratamento iniciado antes do encaminhamento.
Se o ferimento aberto for superficial, a recomendação é lavar com água e sabão neutro e cobrir com gaze ou pano limpo para evitar contaminação. Se o ferimento for aberto e profundo, o local deve ser coberto com gaze ou pano limpo e, na presença de sangramento, pode-se comprimir o local sobre o curativo.
Mais informações sobre condutas em ferimentos estão disponíveis via internet na Unifesp virtual: www.virtual.unifesp.br/cursos/ps/restrito/ferimento.pdf
A profilaxia do tétano deve ser sempre lembrada em casos de ferimentos porque qualquer lesão é de risco, desde que entre em contato com o esporo de Clostridium tetani.
Alguns ferimentos representam um terreno mais propício para germinação desses esporos que, em condições de anaerobiose, transformam-se na forma vegetativa e produzem a exotoxina. Ferimentos profundos, presença de corpos estranhos, tecidos desvitalizados e tratamento iniciado tardiamente merecem cuidados especiais por serem de maior risco.
Para profilaxia do tétano, em linhas gerais, devem ser realizadas:
- Limpeza e desinfecção do ferimento cutâneo com soro fisiológico e substâncias oxidantes. Remoção de corpos estranhos e tecidos desvitalizados. Desbridamento se necessário e lavagem com água oxigenada;
- Avaliação do ferimento quanto à profundidade, grau de contaminação e complexidade. Avaliação da situação vacinal quanto a tétano;
- Aplicação do protocolo do Ministério da Saúde em relação a ferimentos suspeitos de tétano considerando o tipo de ferimento e a situação vacinal;
- Aplicação do esquema para profilaxia da raiva humana com vacina de cultivo celular, se o ferimento tiver sido provocado por mordedura de animal.
Com relação ao acidente com cão relatado por Jéferson, deve ser dado crédito à queixa a despeito do estado alterado dele, acolhendo, avaliando os ferimentos e considerando como possível caso de agressão por cão desconhecido com risco de exposição ao vírus da raiva. Devem ser efetuados:
- Exame físico para localização dos ferimentos cutâneos;
- Avaliação dos ferimentos quanto à extensão, gravidade, profundidade e contaminação;
- Limpeza das lesões com água abundante e sabão ou outro detergente;
- Indicação de vacina antirrábica conforme esquema profilático de pós-exposição;
- Vacinação contra tétano, se necessário;
- Seguimento do esquema de revacinação se o paciente já tiver sido vacinado antes contra raiva;
- Notificação do atendimento antirrábico humano utilizando a Ficha do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan);
- Preenchimento da Ficha "Atendimento Antirrábico Humano" do Sinan;
- Orientação do paciente.
Considerando o risco de abandono ao tratamento pelo fato de Jéferson ser usuário de drogas, a aplicação da vacina deve ser preferencialmente realizada na UBS. Esse tratamento precisa ser garantido todos os dias, incluindo finais de semana e feriados, até a última dose programada. É de responsabilidade da Equipe de Saúde da Família a busca ativa imediata dos faltosos.
Segundo dados do Ministério da Saúde sobre acidentes, a maioria dos casos é provocada por quedas e acidentes de trânsito, vindo a seguir os ferimentos corto-contusos provocados por objetos que furam ou cortam.
Sendo as lesões corto-contusas agravos frequentes na comunidade, cabe à equipe do PSF orientar a comunidade sobre os cuidados iniciais com a desinfecção, manter alta cobertura vacinal contra tétano, incluindo as doses de reforço para adultos e idosos a cada dez anos.
Para as mordeduras por cães, devem ser realizadas ações de redução de acidentes com cães e gatos domésticos porque muitas agressões ocorrem dentro do domicílio com animal da própria família. Orientações sobre os cuidados com o ferimento e a identificação do animal agressor são outras ações que contribuem para redução do risco de raiva e da necessidade de vacinação antirrábica.