As ações de saúde pública visam interferir no processo saúde-doença da coletividade, com a finalidade de proporcionar um melhor estado de saúde para as populações. Essas ações podem, contudo, gerar confrontos entre os interesses individuais e os coletivos, entre as liberdades individuais e o bem-estar ou a segurança da coletividade.
Todas as pessoas têm responsabilidades em relação à vida dos outros, afinal vivemos em sociedade. No entanto, a fim de tornar possível esse princípio, devem-se oferecer oportunidades para que as pessoas conquistem a autonomia necessária para a tomada de decisão sobre aspectos que afetem suas vidas e que sejam capacitadas para que, de forma livre e esclarecida, possam manter o controle sobre sua saúde e suas condições de vida e sobre a possibilidade de interferência sobre a vida dos outros.
Em um contexto cultural que privilegia o conceito de autonomia, passam a ser aceitas todas as escolhas individuais, mesmo aquelas que prejudicam a saúde das pessoas (por exemplo, fumar ou consumir bebidas alcoólicas). Contudo, essas escolhas pessoais devem ser responsáveis, ainda que sejam influenciadas pelo grupo social a que pertencem essas pessoas, que as exercem para ser aceitas como parte desse grupo. Para decisões responsáveis, se supõe uma base de maturidade pessoal que exige informação e formação para adequado discernimento diante de valores.
Entretanto, podem surgir conflitos: essas escolhas individuais referentes ao estilo de vida (saudável ou não) seriam expressão da liberdade individual ou um dever, uma obrigação? Quando a adoção de um estilo de vida não saudável pode prejudicar a vida de outra pessoa, é dever do Estado proteger a coletividade.
Para proteger as pessoas, algumas ações implantadas pelo Estado e que visam ao benefício da coletividade entrarão em conflito com a autonomia individual. O motivo desse conflito é que as ações de saúde pública visam interferir no processo saúde-doença da coletividade, com a finalidade de proporcionar um melhor estado de saúde para as populações. Assim, poderão surgir confrontos entre os interesses individuais e os coletivos, entre a liberdade individual e o bem-estar ou a segurança da coletividade.
Veja alguns exemplos de ações de saúde pública que podem gerar conflitos com a liberdade individual.
a) As ações de vigilância sanitária: quando um restaurante é fechado em razão da falta de condições adequadas de higiene, está se pensando no benefício da sociedade, em detrimento da liberdade do dono do restaurante. Se a autonomia do dono do restaurante prevalecesse, o restaurante não poderia ser fechado. Contudo, como o prejuízo para a população seria grande, o restaurante é interditado, ou seja, o benefício da coletividade sobrepõe-se à autonomia do dono do estabelecimento.
b) O controle de zoonoses: as pessoas que têm animais são responsáveis por sua vacinação para proteger a população de doenças transmitidas por eles. Não há escolha, há a obrigação de vacinar os animais!
c) A saúde do trabalhador: é responsabilidade do empregador cuidar da saúde e da proteção do trabalhador (por exemplo, fornecendo-lhe equipamentos de proteção individual); por outro lado, é dever do trabalhador seguir essas recomendações.
d) O controle de comportamentos considerados não saudáveis: com a restrição da autonomia individual (proibir fumar em edifícios públicos é eticamente validado pelo princípio da não maleficência, ou seja, para não prejudicar os não fumantes, os fumantes têm sua liberdade de fumar cerceada em locais fechados). As ações de saúde pública interferem em algumas escolhas de comportamento individual ao controlar estilos e comportamentos de vida considerados não saudáveis (fumantes, alcoólatras, usuários de drogas, obesos, consumo excessivo de açúcar...). Essas ações têm a intenção de diminuir os riscos de desenvolvimento de doenças que gerariam custos elevados para toda a população com o tratamento das doenças decorrentes desses comportamentos não saudáveis.
e) Vacinação: as campanhas de vacinação também visam ao bem comum, ou seja, todas as pessoas devem ser vacinadas para que as doenças possam ser controladas.
f) Fluoretação das águas: a incorporação do flúor nas águas de abastecimento público visa diminuir a prevalência de cárie da população, trazendo um benefício para o maior número de pessoas, o que justifica sua incorporação nas águas de abastecimento público. A interferência da saúde pública sobre a autonomia individual está, portanto, baseada nos princípios éticos da beneficência e não maleficência.
Entretanto, a adoção de um estilo de vida não saudável (fumar, beber, ter uma vida sedentária, entre outros) poderá não prejudicar outra pessoa, mas apenas o próprio paciente. Nesses casos, é preciso evitar a discriminação das pessoas em virtude de características pessoais e escolhas. A saúde pública não deve culpar a vítima. Dessa forma, a persuasão, a tentativa de esclarecimento do paciente, é eticamente aceitável, mas não a coerção. Não se pode obrigar alguém a adotar um estilo de vida saudável, nem culpar aquele que, na manifestação de sua autonomia, decidir, por exemplo, não parar de fumar, mesmo ciente de todos os riscos à sua própria saúde.
A condenação da vítima é algo sobre o qual a Bioética deve estar atenta. A Bioética se apresenta como uma possível ferramenta para refletir sobre os danos provocados pela mudança de paradigma da saúde de um direito para um dever do indivíduo, assim como eventuais formas de resistência a esse deslocamento.
As ações educativas são fundamentais para o esclarecimento da população sobre os riscos dos comportamentos considerados não saudáveis. Por isso, devem-se oferecer oportunidades para que as pessoas conquistem a autonomia necessária para a tomada de decisão sobre aspectos que afetem suas vidas e sejam capacitadas para que, de forma livre e esclarecida, possam manter o controle sobre sua saúde e suas condições de vida. É preciso respeitar as diferenças e dar oportunidades de os grupos se manifestarem e participarem das decisões.