Bioética

Cilene Rennó Junqueira


Contexto histórico e as relações assistenciais

Todos nós sofremos influências do ambiente em que vivemos, sejam elas históricas, culturais ou sociais. Para construirmos uma reflexão bioética adequada, devemos conhecer e entender essas influências (afinal não podemos excluí-las de nossas vidas!).

O paternalismo hipocrático

Um aspecto bastante importante a ser considerado para que possamos construir a reflexão bioética de maneira adequada é compreender a influência histórica exercida desde a época de Hipócrates.

Hipócrates de Cos (séc. IV a.C.) é considerado o "Pai da Medicina". Sua importância é tão reconhecida que os profissionais da saúde, no dia da formatura, fazem o "Juramento de Hipócrates". Segundo esse juramento, os profissionais devem se comprometer a sempre fazer o bem ao paciente.

Entretanto, devemos retomar alguns conceitos históricos para compreender melhor a influência dessa época. No século IV a.C., a sociedade era formada por diversas castas (camadas sociais bem definidas e separadas entre si) que faziam com que ela fosse "piramidal". Mas o que isso significa? Isso quer dizer que, na base da pirâmide, encontrava-se a maior parte das pessoas: os escravos e os prisioneiros de guerra, que nem mesmo eram considerados "pessoas". Eles eram tratados como objetos e não tinham nenhum direito. Logo acima deles, numa camada intermediária (portanto em número um pouco menor), estavam os cidadãos. Os cidadãos eram os soldados, os artesãos, os agricultores, e estes tinham direitos e deveres. No topo da pirâmide (portanto, um número bastante reduzido de pessoas) estavam os governantes, os sacerdotes e os MÉDICOS.


Os médicos, naquela época, eram considerados semideuses, e estavam encarregados de curar as pessoas "segundo seu poder e entendimento" (como consta no juramento de Hipócrates).

A importância desse resgate histórico é ressaltar que os médicos daquela época estavam em uma posição hierárquica superior às outras pessoas, e essa diferença de posição também se manifestava em um "desnivelamento de dignidades". Isso significa que os médicos (semideuses), ainda que tivessem a intenção de curar os doentes, eram pessoas superiores, melhores que as outras (tinham mais valor que as outras).

Ao longo da história, a estrutura da sociedade deixou de ser piramidal, mas essa postura "paternalista", ou seja, na qual os profissionais da saúde são considerados "pais", ou melhores que os seus pacientes, ainda hoje é percebida com frequência.

Os profissionais da saúde detêm um conhecimento técnico superior ao dos pacientes, mas não são mais dignos que seus pacientes, não têm mais valor que eles (como pessoas). Quando o profissional se considera superior (em dignidade) a seu paciente, também temos uma postura paternalista.

Os profissionais que se baseiam nessa postura paternalista são aqueles que não respeitam a autonomia de seus pacientes, não permitem que o paciente manifeste suas vontades. Por outro lado, também alguns pacientes não percebem que podem questionar o profissional e aceitam tudo o que ele propõe, pois consideram que "o doutor é quem sabe".

O cartesianismo

Estabelecido por René Descartes no século XVII, o método cartesiano (ou cartesianismo), ao propor a fragmentação do saber (com a divisão do "todo" "em partes" para estudá-las isoladamente), sem dúvida contribuiu para o desenvolvimento da ciência. Entretanto, o cartesianismo gerou a superespecialização do saber, entre os quais o saber na área da saúde. Esse fato colaborou para a perda do entendimento de que o paciente é uma pessoa única e que deve ser considerado em sua totalidade (em todas as suas dimensões), pois nos acostumamos a estudar apenas aquela parte do corpo humano que vamos tratar.

De fato, com o avanço cada vez mais rápido da ciência, fica cada vez mais difícil saber de tudo. Entretanto, não podemos perder a visão de que o paciente que vamos atender é um todo, para não sermos "um profissional que sabe quase tudo sobre quase nada" e que assim não conseguirá resolver o problema do paciente.

A descoberta dos microrganismos e a consequente ênfase no estudo da doença

No século XIX, com a evolução dos microscópios, os cientistas Louis Pasteur e Robert Koch iniciaram uma nova fase na evolução da ciência: a descoberta e o estudo dos microrganismos. Até aquela época, não se sabia o que causava a maioria das doenças, pois esses seres diminutos não podiam ser observados. A partir das descobertas desses cientistas, a ciência na área da saúde começou a caminhar a passos largos. Entretanto, podemos atribuir a essas descobertas uma mudança de foco dos profissionais do "doente" para a "doença", ou seja, quando os profissionais se preocupam mais com as doenças (e seu estudo) do que com o doente (e a consequência das doenças para o doente).

Todos esses fatos históricos podem ter contribuído para o processo de "desumanização" da assistência ao paciente, e a tentativa de reverter esse quadro vem sendo foco de estudos de diversos pesquisadores, bem como alvo de políticas do governo federal.

Especialização em Saúde da Família
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