Daniel Almeida Gonçalves e Maria Luiza de Mattos Fiore
Introdução
Caro participante,
Gostaríamos de relembrar alguns aspectos do campo de relação de atendimento de saúde na vertente não tecnológica, que muitas vezes são esquecidos durante o cotidiano de nossa tarefa profissional – esse encontro, tanto para o paciente como para o profissional de saúde, tem a intenção de ser terapêutico e contém os mesmos elementos de qualquer outro relacionamento humano com algumas especificações: uma pessoa, ao cair doente e buscar ajuda junto ao médico, cria com este um relacionamento especial que precisa estar envolto em um clima de confiança.
Perceber e compreender o relacionamento que se forma com cada paciente é precondição para atingir a meta terapêutica. Tähkä (1988) assinala que a eficácia da terapia depende da maneira pela qual o profissional consegue mobilizar e manter a disposição do paciente em cooperar com o tratamento, e para tanto necessita compreender a repercussão subjetiva daquela doença para aquele paciente individual.
Toda comunicação humana compreende um emissor, um receptor e uma mensagem a ser transmitida. Para que isso ocorra a contento, o meio que se interpõe entre os dois participantes precisa apresentar condições mínimas para não impedir a circulação de informações e o código da mensagem a ser decifrado pelo receptor. Na situação face a face, o outro é apreendido em um vivido presente, partilhado pela dupla, envolvido por esquemas adquiridos socialmente. Na maior parte do tempo, nossos encontros com o outro são típicos no sentido do que apreendo com o outro, ao mesmo tempo que interatuo com ele em uma situação que é por si mesma particular (BERGER; LUCKMANN, 1985). Um dos exemplos mais comuns na vida de todos nós é a relação profissional-paciente.
O vínculo que se forma entre um indivíduo que sofre e solicita ajuda de alguém (revestido de um saber) tem seu valor adquirido por sua antiguidade. A capacidade de curar, de afastar a dor e o sofrimento, de conhecer os mecanismos de doença e saúde é consagrada pelo grupo social. Não importa se os elementos para a compreensão do processo doença-saúde sejam espíritos, humores, bactérias ou anticorpos; o indivíduo que domina esse conhecimento atrai atenção e sentimentos que vão da admiração ao medo e desconfiança. Portanto, o carisma dos médicos possui origens remotas que nasceram de uma concepção mágica, religiosa, encontrada em várias civilizações.
Foucault (1987) afirma que a prática médica sempre foi uma relação universal da humanidade consigo mesma. No começo, os conhecimentos eram transmitidos de pai para filho, depois essa prática é incorporada pela religião e, recentemente, com o progresso das ciências naturais a partir do século XIX e principalmente no século XX, a medicina adquire o patamar de ciência médica.
Portanto, a relação profissional-paciente é uma situação assimétrica, de dependência, na qual um dos parceiros, o doente, representa o papel de objeto do outro e é envolvido por muitas expectativas e esperanças de ambos os lados. Na busca confusa de ajuda, espera-se que o médico seja capaz de dar sentido ao adoecer e atinja a cura, enquanto este conta com o reconhecimento e a confirmação de seu poder de reparação. As expectativas são tantas que podem chegar a transformar as relações de troca em relações de poder, e isso elimina a possibilidade terapêutica.
Essa relação interpessoal tem como objetivo principal o corpo, sempre visto do ponto de vista concreto, e se expressa pela palavra. Esta, por sua vez, é sempre carregada de múltiplas possibilidades, de vários sentidos, ainda mais porque o corpo também é sede do desejo. Jeammet, Reynaud e Consoli (1989) lembram que esse encontro nos remete às nossas primeiras situações entre pais e filhos, portanto é comum reviver sentimentos e condutas mais infantis na atualidade da interação profissional-paciente.
Da mesma maneira, devemos voltar o olhar para o compartilhamento de cuidado comum na Atenção Primária, em que a pessoa, tanto paciente quanto cidadã, tem contato com vários profissionais de saúde, que passam de alguma forma a exercer influência sobre seu estado de saúde.
Via de regra, desde o primeiro contato dessa pessoa com os profissionais de saúde, já há alguma interação e o surgimento de elementos terapêuticos, que podem favorecer ou prejudicar a linha de cuidado, por meio da construção ou não de um vínculo. No entanto, é comum os profissionais da Atenção Primária não valorizarem ou mesmo ignorarem esse aspecto, deixando de lado o poder terapêutico do vínculo.
Na Atenção Primária, a facilidade de acesso aos profissionais de saúde e o cuidado longitudinal, no decorrer do tempo, fazem desse nível de cuidado um ótimo local para estreitamento do vínculo com o paciente e busca de uma ótima ação terapêutica, quando identificada alguma condição mórbida. Além disso, essa relação é fundamental para uma almejada construção coletiva de cidadania e autonomia da pessoa (CAMPOS, 1997).
Merhy (1994) destaca que "criar vínculos implica ter relações tão próximas e tão claras, que nos sensibilizamos com todo o sofrimento daquele outro, nos sentindo responsável pela vida e morte do paciente, possibilitando uma intervenção nem burocrática nem impessoal". Esse sentimento de responsabilidade tem sido um dos elementos fundamentais na ação dos profissionais da Saúde da Família.
Dessa forma, é muito importante o entendimento de como se organiza a relação profissional de saúde vs. pessoa, que, quando bem-estruturada, é terapêutica. Mas como isso acontece?
Vejamos a seguir!